sábado, 2 de outubro de 2004

FITAS

No passado dia 25 de Setembro, referenciei a crítica de cinema de F. F., no Expresso, o qual olhara a obra de Catarina Ruivo, André Valente, de uma perspectiva extremamente negativa. Entre outras expressões, o crítico escreveu: "cadáver do Cinema Novo", "saco de plástico que diz Verdes Anos", "detector de mentiras", "ambiente irrespirável", "está perdido, narrativa e simbolicamente", "tal gato com o rabo de fora". Abro o Expresso de hoje e vejo, na coluna de crítica de cinema, a prosa de M. Cintra Ferreira sobre a mesma fita. Nela, lê-se: "Uma pequena surpresa no mais recente cinema português é a estreia na longa-metragem de Catarina Ruivo [...]. Mas o que neste caso mais interessa é o trabalho da realizadora, de técnica segura e mão certa e sabendo dirigir os actores".

Claro que gosto muito mais desta crítica do que daquela. Sei que o trabalho dos críticos é livre, tem a ver com as suas coordenadas estéticas e preferências ou gostos. Mas não poderíamos ter critérios mais objectivos? O que um vê um mau exemplo de filme português, outro vê uma pequena surpresa. Humores, intrigas, ligações a grupos, sei lá que mais - tudo pode servir de base e apoio a uma classificação de uma mesma obra. Como reage uma audiência a informações tão díspares? Ou se tem um treino grande em ler as críticas, ou se acredita nelas (e, no presente caso, o filme estaria tramado se lêssemos a crítica de F. F.) ou não se segue pura e simplesmente a crítica.

A cara que mereces

O filme A cara que mereces, de Miguel Gomes, passou ontem no IndieLisboa2004. Da revista Zeromag, Outono/Inverno 2004, tira-se a seguinte sinopse:

"Francisco, porta-te bem! Sei que é o teu aniversário, já tens trinta anos, é Carnaval, estás vestido como um cowboy para a festa da escola e estás rodeado de miúdos que detestas. Mas não é razão para seres tão chato... Repete comigo: «Até aos 30 anos tens a cara que Deus te deu. Depois, terás a cara que mereces»".

Aqui, não quero fazer o papel de F. F. no Expresso. Mas confesso que não bati palmas no final da projecção, ao contrário de muitos amigos do jovem realizador e pertencentes a uma grande comunidade de entusiastas de cinema. Miguel Gomes, no começo da sessão, falara da entrega e generosidade dos artistas na produção da fita.


filme.JPGO filme é constituido por duas histórias, a primeira em torno de Francisco e Marta, animadores de uma festa para crianças, ele vestido de cow-boy e ela de borboleta. A algum nonsense junta-se uma grande criatividade e planos muito bonitos. Francisco é hipocondríaco, sempre em desmaios e febres, e muito azar em pequenas desgraças. A primeira história acaba com ele a ter sarampo, que liga à segunda, onde Francisco desaparece de cena mas sempre enunciável, através de sete amigos que se prepararam para o ajudar na cura da doença. De acentuado onirismo, na segunda história são nítidas as influências das histórias maravilhosas de Harry Potter e de muitas memórias do cinema. Mas a unidade narrativa da primeira história perde-se aqui.

Trata-se, contudo, da primeira longa-metragem, onde a generosidade anda a par de alguma ingenuidade. Ora, sem eu querer ser contemporizador, acho que há lugar para o cinema fora do mainstream e de histórias estereotipadas que o cinema comercial nos impinge. A violência e os traumas psicológicos que inundam o cinema de uma sala perto de si são aqui enquadrados pela imaginação e um regresso aos contos e ao fascínio da infância, pela despreocupação com uma narrativa linear, pela dádiva de planos e rostos simultaneamente humanos e pasmados.

Imagem: capa da revista Zeromag, da associação Zero em Comportamento. Espero que a vida da associação seja reanimada. Lisboa precisa das suas iniciativas em prol do cinema.

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