José Tolentino de Mendonça distribui por cinco personagens a peça O Estado do Bosque (2013): John Wolf, o guia da floresta, Peter Weil e Jacob, mais jovem, os dois caminhantes na floresta, Viviane Mars e o Destino. São sete cenas, em que as diferentes personagens falam e revelam ao leitor como se entra, como se percorre e como se aspira a chegar a um ponto (fim, eterno, paraíso, alegria).Logo na primeira cena indaga Peter (Pedro) a John (João) do sentido do trilho. John, que é cego, responde não saber pois cada trilho leva a mais do que um sentido. Há aqui uma asserção realista: cego não consegue esclarecer. Há também uma posição simbólica: a vida de cada um tem um sentido, um significado, mas cada indivíduo precisa de a procurar, ou seguir, ou construi-la.
No texto, nota-se a busca, a vontade de obter uma resposta. Diz o cego muito mais à frente (cena seis) que à noite o bosque deixa de ser cegueira: o que vê e o que não vê detectam as mesmas coisas - nada. Nessa cena, o cego (o Tirésias grego) dialoga com o destino, que o interroga porque ele arrasta inocentes para o bosque. O destino insiste em saber o que faz John desde que o sol desce e a escuridão se abate sobre o bosque. O Tirésias do bosque distingue os cheiros, as vozes, os acentos.
A revelação, a procura da luz e da fé estão patentes em todo o belo texto do padre Tolentino Mendonça. Na adaptação ao teatro, Luís Miguel Cintra interpreta John e o Destino é uma gravação que dialoga com John e revela essa procura da revelação. Num momento de fragilidade emotiva grande, o actor e encenador sentiu a necessidade de proferir as palavras sagradas do Pai Nosso. Já era evidente esta procura religiosa de Cintra quando encenou Paul Claudel, como escrevi aqui, no começo do ano de 2012.A Claudel, católico que fez aturadamente a exegese da Bíblia, Luís Miguel Cintra acrescentou outro autor, Pier Paolo Pasolini, poeta e cineasta maldito, marxista e homossexual, que dedicou um filme ao Papa João XXIII e protestou contra a dessacralização da vida. Para o ator e encenador, O Estado do Bosque é uma revisitação abstrata do Auto da Alma de Gil Vicente. Revejo o dispositivo cénico (de Cristina Reis): um centro em que o cego recebe e fala com Peter (Nuno Nunes), Jacob (David Granada) e Vivienne (Viviane) Mars (Vera Barreto), um rectângulo de luz sobre o chão, um poço atrás, um lugar onde os actores permanecem e se deslocam por detrás da formação de cadeiras em roda desse centro e onde se sentam os espectadores. Essa intimidade, essa proximidade, essa multiplicidade de pontos de vista dos espectadores, leva-os a compreender melhor o sentido dos gestos, silêncios, lamentos e interrogações - a revelação.
Num pequeno texto, o autor da peça lembra-nos que a religião não é apenas uma questão de igrejas e de padres, mas é verdadeira se for uma coisa humana. Deus não habita num passado distante chamado Bíblia, continua Tolentino Mendonça, mas existe, é atual. O Estado do Bosque é essa recondução ao lugar.
Leitura: José Tolentino de Mendonça (2013). O Estado do Bosque. Lisboa: Assírio & Alvim, 67 p. 10 €
Peça: Teatro da Cornucópia, Bairro Alto, Lisboa, 15 €
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