domingo, 30 de julho de 2006

PAULO QUERIDO NO EXPRESSO DE ONTEM

Vale a pena ler o texto de Paulo Querido no Expresso de ontem (ver também o seu blogue Mas certamente que sim). Intitulado O fim da galáxia Gutenberg, põe em confronto um tempo em que o mundo era percepcionado através dos media "tradicionais" (livro, imprensa, rádio, televisão), de grande fiabilidade na informação, e ensinar era fácil, naquilo a que chama a infosfera, e a actualidade.

Hoje, a literacia é bastante mais do que dominar alfabetos e gramáticas. Diz Paulo Querido: "Saber ler os media num contexto de supressão/compressão do tempo e do espaço é o rito de iniciação ao mundo comunicacional pós-Gutenberg". E destaca o mundo em que as crianças vêem muita televisão e, consequentemente, recebem muitas mensagens publicitárias, traduzíveis na necessidade de uma nova literacia mediática. Na sequência da leitura estimulante de Lawrence Lessig (
Free Culture) , aponta essa literacia recente como crucial para a cultura da nova geração, de que o YouTube faz parte: os adolescentes deixam de ver a MTV, isto é, deixam de ver televisão, para passarem a ser televisão, construindo os seus próprios vídeos. Abandonada a televisão (e os media tradicionais), a relação com o mundo passa a efectuar-se, nas vertentes de informação, formação e lazer, pela internet (comunicação de espectro amplo) e pelo telemóvel (comunicação de espectro reduzido).

E aqui entra-se no centro do texto de Paulo Querido, embora apenas nos últimos três parágrafos do seu ensaio publicado no semanário e repercutido no seu blogue: como pode o professor captar a atenção dos alunos, se estes sabem "manifestamente mais sobre o que precisam [...] do que o suposto mestre? Como pode um pai nascido e crescido num mundo «read only» ensinar comportamentos e técnicas a um filho que cresce num mundo «read and write»? Para Paulo Querido, seguindo Lessing, o maior problema reside em os actuais letrados resistirem ao mundo «read and write».

É, certamente, um desafio, um grande desafio. Mas creio que poderíamos distinguir várias camadas - e reflectir sobre este optimismo tecnológico. Em primeiro lugar, há fundamentos que se mantêm: a língua, o alfabeto, a importância da comunicação interpessoal, a cultura e as tradições. Depois, os saltos tecnológicos criam gente de "dentro" e gente de "fora". Há os que aderem e os que recusam: nós não temos memória, mas a passagem da escrita manual para a máquina de escrever (no jornalismo, nos escritórios) - que terá ocorrido massivamente nas três primeiras décadas do século XX - causou enormes discussões. E maior discussão terá havido aquando da imprensa do já referido Gutenberg: maneirismos, formas artísticas, retórica, cultura, modificaram-se, ou morreram.

Em terceiro lugar, há a questão da velocidade de adesão. Nos outros momentos de ruptura tecnológica, houve um período de adaptação mais ou menos longo. A rádio precisou de quase uma geração para se tornar aceitável, no caso da transmissão de concertos (ao vivo versus por gravação em disco). Já a televisão, certamente devido ao poder da imagem, teve uma mais rápida adesão. A decisão de compra de um aparelho de rádio ou de televisão fazia-se atendendo ao poder de compra das famílias, em que componentes hoje desprezadas - como a harmonia da família, a formação e o lazer simultâneo - entravam em linha de conta. Quando surgiram os primeiros computadores domésticos (quinze anos atrás?), uma espécie de máquinas eléctricas de escrever mais avançadas, a adesão foi mais rápida e partiu dos pais tendo em conta a formação dos seus filhos. Basta olhar a publicidade da época, em que o computador era o garante de uma maior literacia. Dito de outro modo: quem não possuísse computador em casa era analfabeto funcional. Hoje, já passamos essa fase de distinção, pois os aparelhos banalizaram-se.

Com esta terceira reflexão, quero especificar que os tempos de adesão são, hoje, mais curtos e intergeracionais. Por necessidade de trabalho (ter correio electrónico), as empresas rapidamente se apetrecharam dessa valência. E, à internet, as empresas fizeram corresponder a intranet, a rede interna. Isso demorou algum tempo. Eu recordo-me desse tempo, que mediou entre 1994 e 1997, escassos dez anos atrás. E as empresas adoptaram a filosofia dos blogues de há 2-3 anos a esta parte. O que quer dizer, finalmente, maior rapidez de adesão devido a necessidades de trabalho - e não somente de lazer.

Uma quarta reflexão prende-se com a qualidade dos materiais que se produzem. Quando tive a primeira máquina fotográfica, gastei imenso tempo com ela - a ver as características técnicas, a experimentar o zoom, a profundidade de campo, a distinguir entre estéticas a preto e branco e a cores usando rolos com granulagem diferente, no sentido experimental do termo. Do mesmo modo quando tive uma simples esferográfica e um caderno, transitando da época da lousa de ardósia. A memória passou a existir no caderno, ao passo que o que fazia no quadro de ardósia tinha de ser limpo para fazer novas operações. Guardar, experimentar, comparar evoluções - eis um primeiro momento nesta reflexão. A qualidade gera outro momento. Muito do que eu escrevi em cadernos - poemas, esboços de contos - deitei fora algum tempo depois de executar. Eram simples experiências. Com as fotografias não segui esse rumo, pois havia um custo associado a cada imagem e porque elas retratavam um momento da vida.

Ora, os vídeos do
You Tube são, a esmagadora parte deles, experiências, coisas domésticas, "apanhados" - que colocamos em rede porque pensamos que alguém vai apreciar. Mas o lugar certo deles é o apagamento real daqui a algum tempo. Porque o seu valor estético intrínseco é nulo. E o custo económico é negligenciável (após ligação à internet e aquisição de máquinas digitais de imagem). Aprende-se? Claro que sim. A nossa vida individual é feita de permanentes momentos de experiência.

Contudo, não gostaria de misturar forma com conteúdo. Digamos que, e de forma simples, as tecnologias são formas, são ferramentas. O domínio tecnológico é fundamental. Mas precisamos igualmente de conteúdo, de matéria (lazer, informação, formação). O desenvolvimento técnico é mais rápido, porque as ferramentas são desenhadas para uma rápida utilização. Fazer um vídeo e colocá-lo no You Tube é muito mais fácil do que fazer um filme de celulóide ou um vídeo analógico. Mas fazer um vídeo onde se fale da filosofia de Platão ou do cultivo de uma cepa de vinho com determinadas qualidades exige saber ou encontrar alguém que fale disso com conhecimento. O domínio técnico apenas é de ordem do espectáculo, do efémero, do que desaparece na espuma do dia seguinte. Amanhã, há necessidade de aprender outra e outra tecnologia.

E, para concluir, gostaria de dizer que não concordo com a ideia do desaparecimento dos intermediários, sejam letrados ou apenas o nosso patrão. Se atingíssemos essa utopia de ausência de professores, polícias, patrões e outra espécies de profissões ou estatutos que não gostamos muito, seria que iríamos ser todos realizadores de vídeo? O colocar uma experiência no You Tube passa a ser um património de todos e não um facto de distinção individual, excepto para os iletrados de vários níveis (os que não lêem a sua língua ou não falam outras línguas, como o inglês, os desempregados de longa duração, os provenientes de profissões de força manual, os mais velhos). Mas também para estes há reciclagem possível. E se vivemos num mundo de rankings, de classificações, isso significa que há os que avaliam e os que são avaliados.

3 comentários:

Anónimo disse...

Saber dominar a tecnologia é apenas o primeiro passo, depois é necessário ter ideias e produzir depois conteúdo com essas ideias que resista ao tempo. Por mais avançadas que sejam as máquinas fotográficas elas nunca deram a ninguém noções de composição, utilização de velocidades e de aberturas e outras coisas que distinguém um fotógrafo com talento do mero "apertador de botões". Para muitas utilizações uma foto sem interesse estético pode ser suficiente, mas noutros há óbviamente diferenças. É uma ilusão pensar que a tecnologia substitui o saber e a experiência, mas é o que os fabricantes de software e de hardware querem que pensemos.

Anónimo disse...

Acrescentaria a esta ideia de P.Querido ‘Saber ler os media num contexto de supressão’: e, nesse mesmo contexto, saber ler o mundo, assim como toda a semiologia das suas manifestações ‘read only’.
Mas incluiria a seguinte dúvida à possibilidade desta leitura:
Em que lugar habita o ‘read and write’? Ou melhor, como se lerá ele, que está permanentemente em produção e em constante reconfiguração; ele, que parece ser, afinal, um veículo de criatividade, sempre inquieta e deslumbrada?
Como refere o comentador anterior, é necessário produzir conteúdo – mas o que é isso senão a nossa própria aparição como corpo criativo, a da nossa assumpção como uma manifestação mais ‘virtual’ do que ‘real’ –afinal, que sabemos, efectivamente, do ‘real’, se não nos ‘conhecemos, ainda, na miríade das nossas/suas potencialidades que permitem incluir, hoje, uma série de transfusões, não de sangue mas de tecnologia?
Não pertencemos já a uma era em que o teclado é a nossa nova forma de dedos e o ecrã o nosso novo par de óculos?
Perguntaria se serão eficazes docentes sem sensibilidade tecnológica, num presente/futuro onde os intermediários, caros a Rogério Santos, virão a assumir o nobre estatuto de testemunhas qualificadas, mais capazes de ‘mostrar’, ‘exemplificar’ e incentivar, do que de avaliar – aqui, todavia, incluo nova dúvida, porque a avaliação é inexorável no implacável e selvagem mercado do trabalho.

Anónimo disse...

Caro Rogério, obrigado pela sua análise ao meu ensaio na Actual, que muito me honra. (Só hoje cá vim ler.)

Não tenho grandes (ou pequenas) ilusões sobre o fatalismo tecnológico: com as tecnologias de informação temos mais uma, e muito má, clivagem cultural, ou pelo menos de utensilagem. O meu optimismo, que admito possa ser visível enquanto tal, é sobretudo um gosto pessoal pela descoberta. Pessoal e cultural também, na medida em que representa uma atitude que se encontra numa agradável minoria de pessoas.

Mas não me limita. E, como o Rogério bem sublinhou, temos a questão das velocidades. Acho-a aterrorizante. A velocidade tem aumentado e hoje veja como os jovens se vão adaptando a um mundo onde tudo é instantâneo -- ou não existe.

Caro Mário, de acordo com a ilusão que faz vender máquinas. Mas concordamos também que há imensas aplicações onde antes se gastava dinheiro para obter um produto hoje de valor bastante diminuto. Vejo isso pela positiva, como o que aconteceu com os pintores: ficam os fotógrafos libertos de rotinas mais ou menos frustrantes.

Caro mje (e também Rogério), posso ter dado pouco relevo aos professores e educadores, mas na realidade considero-os deveras importantes. Simplesmente parece-me haver desadequação (e o sistema está contra eles). São importantes porque têm o insubstituível: a experiência. Assim a possam passar a quem dela precisa desesperadamente, num mundo tão mais difícil de compreender quanto fácil de integrar operacionalmente.