sexta-feira, 31 de maio de 2019

Bernardino Pires (6)

No arquivo de fotografias de Bernardino Pires, que o filho Daniel Pires tem vindo a publicar no Facebook, destaco a que aqui ilustro. Título: "Peixeiras, Silhuetas". Sem data precisa, ela foi tirada durante as décadas de 1950 a 1960. [peixeira: mulher que vende peixe; no Brasil, designa faca que corta o peixe. Existe também o termo varina: vendedora ambulante de peixe]
A composição é notável. Na frente, duas mulheres com a canastra à cabeça, logo seguidas de um exército de outras peixeiras (quatro e ainda silhueta de mais duas, pelo menos). Vestem roupa escura, do lenço na cabeça ao avental, e andam descalças. Elas caminham ao lado de um braço de rio, julgo, atendendo a que se vê uma margem ao fundo da imagem. O que baralha a minha interpretação.
Se fosse mar e atendendo à sombra das peixeiras projetada no chão seria de manhã ainda cedo. O rio não está identificado mas sabe-se que os rios em Portugal atlântico correm todos de leste para oeste, a invalidar a sombra matinal vinda de leste. E, além disso, parece-me que as canastras vão vazias, a averiguar pelos panos em cima de uma delas. Por isso, não sei se saem da doca a caminho dos clientes ou se regressam.
Repito: a composição fotográfica é notável. Há linhas distintas e que dão dinâmica à imagem. À linha que demarca o horizonte (a dividir a fotografia em duas partes), e que revela equilíbrio e sossego, junta-se a diagonal do muro e do trajeto das varinas, dando movimento a estas. Elas deslocam-se apressadas. Pelo tema (transporte artesanal de peixe) e pela composição, não tenho dúvidas em classificar a fotografia dentro do padrão estético do neorrealismo.


quinta-feira, 30 de maio de 2019

Bernardino Pires (5)

Na fotografia de Bernardino Pires em cima, vê-se a rua das Flores (Porto) quase até ao final, cheia de edifícios do século XVII em diante. O edifício da esquina com a rua Mouzinho da Silveira ostenta um anúncio que percorreu décadas de exposição - talvez o mais emblemático da cidade: "Vestir Bem e Barato Só Aqui". Só o reclame merecia ser considerado património nacional. Nem vestígios de automóveis, que vieram depois, nem esplanadas com guarda-sois a publicitarem cervejas e gelados, que existem hoje. Felizmente que agora, naquela rua encantadora que já foi de ourives e de ourivesarias, abriu um museu magnífico de arte sacra.

A fotografia tem outro plano, que me interessa explorar, a do muro à saída da estação ferroviária de S. Bento, um balcão para a cidade - para esta parte da cidade. Os dois homens da fotografia parecem desfrutar da paisagem exuberante, mostra da capacidade empreendedora da burguesia da cidade, que se desenvolveu com o comércio marítimo e fluvial ali mais abaixo.

Fardados (militares? taxistas?), talvez estejam apenas a observar algo que decorre mais à frente. Nós não sabemos mas imaginamos uma conversa mais acesa entre dois transeuntes. É um instantâneo que o fotógrafo não deixou perder, embora não nos tenha possibilitado conhecer a história toda.

A fotografia de Bernardino Pires em baixo também tem um pequeno muro como referência. Mas, ao contrário da anterior, em que o olhar dos homens fardados se virava para o exterior, a conversa entre namorados é para dentro. Possivelmente, estão a preparar o futuro do casal. Eles são jovens, elegantes e bem vestidos, ele com anéis nos dedos e ela com brincos (argolas), e bem penteados. Seria um passeio de domingo à tarde, com tempo para falar. Em dia quente, a conferir pela blusa e sapatos da rapariga. Um pormenor: o chão está sujo, pois um dos sapatos da jovem tem algo pegado ao tacão (papel? folha de árvore?).

O muro está colocado junto a um vale, pelo declive do fundo da imagem, se calhar um caminho onde corre o rio Douro (junto às Fontainhas). A rapariga ao lado, igualmente bem vestida, observa a paisagem, como os homens fardados da outra fotografia, a olhar para fora. A escarpa em frente não tem muitas árvores, talvez acácias e eucaliptos. O fundo da imagem tem um elemento estranho que não consegui interpretar - um drapeado. Não me parece ser um pano para toldo colocado em dia de festa. Ou, então, foi simplesmente uma falha no negativo.



quarta-feira, 29 de maio de 2019

Bernardino Pires (4)

A série de hoje de fotografias de Bernardino Pires mostra dois quadros: um fixo e outro em movimento. O fixo é o da vendedeira e do homem a dormitar. De vendedeira diz-se de quem trabalha num mercado de abastecimento de géneros alimentares (Ciberdúvidas). O quadro em movimento é o das pessoas que passam naquele espaço.

A mulher que vende já é velha, com rosto de sofrimento e olhar focado no vazio. As mãos, pousadas no regaço, parecem inchadas por doença. Veste um xaile, a indicar temperatura menos amena. Nos pés, parece que usa uns tamancos de madeira. O cesto à sua frente está vazio ou quase. Não sei se ela vendia alhos ou batatas; eu gostaria que fosse algo mais agradável como figos. O cesto atrás está mais cheio mas não adivinho o conteúdo.

Do homem, há menos detalhes, pois ele está escondido sob o casaco. Certamente a dormitar ou porque quis evitar o contacto visual com o fotógrafo. Mas, no casal, os sinais de pobreza são claros. Duas janelas em prédio ao fundo da arcada estão muito destruídas e sem vidros. Efabulo: seriam vendedores de alhos ou batatas de Gondomar? Ou da Maia?

Nas outras duas fotografias visualizam-se uma mulher de avental com um bebé ao colo e uma jovem com uma mala a lembrar uma lancheira, esta em passo mais rápido que aquela. O homem continua dobrado sobre si mesmo, a indicar estar a dormitar e não a evitar o fotógrafo. Este teria tirado as três imagens como instantes do quotidiano, quase a lembrar um filme, embora na terceira imagem ele se tenha deslocado para a sua esquerda (já sem se vislumbrar as janelas ao fundo da arcada).

O local é o de arcada da Ribeira (Porto), perto da ponte D. Luís I. Bernardino Pires fez muitas fotografias naquela área. O Barredo, o bairro por detrás da arcada, é muito antigo. Na época das imagens, as lojas em frente ao rio eram mais armazéns onde se guardavam legumes secos, como feijões, azeitonas e outros bens. Ainda havia tráfego fluvial - barcos e batelões acostavam; na outra margem do rio, a azáfama comercial envolvia barcos rabelos com vinho fino oriundo da Régua e chamado vinho do Porto. Um pouco acima do local fotografado, transitários e empresas marítimas ainda animavam muito a zona. A população local estava envolvida em pequenos ofícios, de carregador a trolha (pedreiro) e a empregado de loja de ferragens, que existiam pela rua de Mouzinho da Silveira acima. Na década de 1960, a zona da Ribeira entrou em decadência, com a mudança do peso do porto fluvial para o porto de Leixões (Matosinhos), a permitir a atracagem de navios de maior calado. Os transitários saíram todos para Matosinhos e Perafita (terminal de contentores). No final da década de 1970, houve renovação predial mas muitos dos moradores locais seriam colocados noutras zonas do Porto, alterando as características locais, hoje um grande espaço de restaurantes e alojamento local para turistas internacionais chegados em voos de baixo preço.




terça-feira, 28 de maio de 2019

Bernardino Pires (3)

Bernardino Pires fotografou a loja de fruta no rés-do-chão e o primeiro andar habitado com floreiras e um pequeno santuário, além da varanda de ferro a toda a largura do prédio. Concentrou ainda a sua atenção no rapazinho que seguia pela rua dos Caldeireiros a atravessar a travessa do Ferraz, não muito longe da então prisão ao Campo dos Mártires da Pátria (onde estivera preso Camilo Castelo Branco).

O rapazinho preenche uma parte da fotografia do lado esquerdo. Vê-se que está afoito na rua, conhece-a bem. De calções, blusa aberta e uma mão atrás das costas, olha para o lado no momento em que desce do passeio. Quantos anos teria ele? Quatro? Cinco? Vai fazer um recado? Ou vai ter com um companheiro para uma brincadeira? Na mão esquerda ele transporta um objeto mas eu não consigo perceber o que é.

Volto ao edifício e ao exterior. No primeiro andar, percebe-se que o prédio tem azulejos a revestir o seu exterior, com um desenho de figura circular, a aparentar uma boa construção. A luz solar desce forte pela rua e obscurece a parede visível da travessa do Ferraz. Pela minha leitura, passaria pouco tempo depois do meio-dia. Assim, talvez o rapazinho tivesse chegado de uma brincadeira no jardim do Campo dos Mártires da Pátria, o Jardim da Cordoaria (de João Chagas) e a preparar-se para almoçar.

[na foto a seguir, a imagem do local obtida através do Google Maps. As comparações entre as duas imagens deixo-as a quem ler esta mensagem]



segunda-feira, 27 de maio de 2019

Bernardino Pires (2)

Claude Monet pintou a catedral de Rouen em diversas horas do dia, de modo a obter diferentes impressões de cor. Na fotografia, Bernardino Pires usou um princípio próximo - o da usura do tempo num espaço.

Das imagens já publicadas pelo filho, Daniel Pires, há duas séries retratando mulheres: na estação ferroviária de S. Bento e nas arcadas da Ribeira do Porto. Fico-me pela primeira série. Na fotografia inicial, duas mulheres ainda jovens conversam. Muito serena, a mulher à direita parece estar a confessar um pormenor mais íntimo da sua vida - talvez a pedir um conselho à outra mulher. Elas estão sentadas junto a um pilar da entrada da estação e o fotógrafo indica-nos um pormenor, a do sítio onde elas se sentam: cestos fortes de verga onde transportam certamente produtos domésticos ou alimentares. Mas o maior enquadramento vai para a imagem de azulejos da estação. Uma análise superficial pareceria indicar que a atividade das mulheres se ligaria ao rio ou ao mar, mas a estação ferroviária não é rota para qualquer das áreas, exceto numa zona longínqua, a de Viana do Castelo. Olhando melhor a imagem de azulejos, vejo dois motivos: transporte de pessoas, com um guarda-chuva a despontar, transporte de mercadorias de praia ou de encosta com uma parelha de bois a ajudar a transferência desses bens. O vestuário das mulheres pode configurar esta minha hipótese. À falta de melhor descrição chamo-as de minhotas: o lenço, o avental, as cores percecionadas da roupa.

Não tenho ainda informação sobre o modo como Bernardino Pires fotografava: com tripé? Com que tipo de máquina? Portátil? A fotografar de modo discreto ou quase clandestino? Qual a diferença entre o que ele queria fotografar e o que aparece na imagem?

A segunda fotografia alarga o ângulo de visão. Uma das mulheres, a que parecia estar a confidenciar, está de pé, e veem-se duas outras mulheres que parecem fazer parte do mesmo grupo, dadas as semelhanças de vestuário, além de uma criança. A imagem revela-nos que estão no átrio da estação mesmo junto à porta de entrada para a gare dos comboios. Talvez a hora de partida esteja a aproximar-se e a mulher levantou-se.

Na terceira imagem, duas das mulheres e criança desaparecem de cena, a indicar movimento para o comboio ou saída para obter informações sobre horários. A fotografia revela um pormenor delicioso. A mulher a vestir roupa menos tradicional abaixa-se e pega num garrafão: vinho? azeite? O comboio deve estar pronto a partir, pois se observa movimento na entrada para a gare. Nas duas últimas fotografias, à entrada da gare, está um polícia no mesmo sítio, o que pode indicar que as fotografias teriam sido feitas quase umas atrás das outras, como se fossem instantâneos.

Por conseguinte, a decisão de fotografar é imediata, mas o fotógrafo não perde de vista os seus objetivos principais: o painel de azulejos e as mulheres em viagem. A conversa, a espera e o momento de partida estão bem patenteadas nas imagens. O comboio que não se vê poderia ser um movido por uma máquina a carvão (a vapor), como outras fotografias de Bernardino Pires mostram.

Desta análise, ficou-me uma pergunta: e os homens onde estão? Pela divisão social de tarefas existente à época, a atividade exercida pelas mulheres era doméstica - compras. Ou uma outra hipótese: visita a um familiar doente ou internado no hospital.

Mas há um tempo sereno de espera, sinal que hoje não encontraríamos: a estação de S. Bento, no Porto, como a do Rossio, em Lisboa, é (são) porta(s) de acesso a uma população flutuante e diária entre emprego na cidade e habitação nos subúrbios urbanos. O vestuário à minhota e os cestos de verga fazem parte da história de há sessenta setenta anos. A fotografia é um meio privilegiado de se estudar uma sociedade e um cultura. Bernardino Pires foi um bom observador dos costumes, combinando tempo e espaço com harmonia. Julgo, assim, muito útil contribuir para a divulgação de uma obra que não é mero trabalho de amador.




domingo, 26 de maio de 2019

Bernardino Pires (1)

[interrompo o longo silêncio e quebro por dias o fim do blogue. Uma razão: a escrita de alguns textos sobre um fotógrafo que estou a descobrir, embora já tivesse falado dele aqui: Bernardino Pires]

O que se segue é um começo de ensaio sobre Bernardino Pires (1904-1977), ilustrador e desenhador gráfico na área da publicidade, tendo trabalhado para grandes empresas como a Ciba-Geyge (atual Novartis), de produtos farmacêuticos e para agricultura [enquanto tentativa, o presente texto pode ser alterado no sentido de melhorar as interpretações que se seguem].

Apaixonado pela fotografia, participou em concursos patrocinados pela Associação Fotográfica do Porto, a título individual e integrado em grupo restrito de amigos – Tertúlia Fotográfica "4+" –, ganhando variados prémios. A época de maior atividade fotográfica foi durante as décadas de 1950 e 1960. As imagens abaixo cobrem este período, sem se poder datar com maior rigor tal produção, e refletem a realidade do Porto e seus arredores. O espólio fotográfico de Bernardino Pires inclui negativos 6x6, 35mm, filmes, diapositivos e amplicópias.

Das imagens já disponibilizadas no Facebook por Daniel Pires, a quem agradeço toda a informação prestada e permissão para escrever sobre o pai, destaco algumas. Ainda sem um grande apuro estético, eu identifico as imagens como pertencentes ao estilo neorrealista. Várias fotografias representam espaços de trabalho artesanal, como agricultura e venda de peixe e de legumes. Lazer ou compromisso social são fornecidos em outras imagens. No conjunto, há ainda imagens consideradas mais artísticas, como o nevoeiro a encobrir a ponte D. Maria Pia (Porto).

O movimento da mulher que transporta o saco à cabeça retirado da carroça junto à ria (de Aveiro, julgo) mostra-nos uma pessoa ágil e decidida, a deslocar-se rapidamente e em equilíbrio. O ligeiro desfocar da figura feminina ilustra essa velocidade. A imagem não nos revela o rosto, apesar dos óculos, mas podemos concluir que o esforço denota uma tarefa de rotina. Olho ainda os pés descalços, marcador de uma época.

"Grupo de amigos" mostra um conjunto de cinco crianças em redor, que convergem a sua atenção compenetrada para o mais velho, vestido com casaco, à direita, a mostrar um objeto - que não consigo identificar. As crianças estão descalças e o local parece-me junto à Ribeira (Porto), dado existir uma outra fotografia em local parecido - venda de legumes. A análise ao vestuário das crianças daria um ensaio. A fotografia remete para a obra cinematográfica de Manoel de Oliveira, Aniki-Bóbó (1942).

Bernardino Pires parece, por vezes, um fotógrafo tímido, pois as cenas são captadas por detrás. Talvez não quisesse perturbar os acontecimentos com a sua presença mas ficar-se no lado mais antropológico, como a imagem de homens montados em bicicleta. Eles estão em pausa e a escutar algo. Não nos são dadas muitas pistas mas vislumbra-se um homem ao fundo e voltado para os ciclistas. Distribuição de tarefas de trabalho? Escuta de relato de futebol no rádio (telefonia) em dia de domingo? A reunião iniciou-se sob a sombra de árvore mas o número de homens cresceu além da proteção daquela. Diversos indivíduos usam boinas. Na bagageira de algumas máquinas há embrulhos, talvez um lanche ou encomenda a entregar. Uma nota: as bainhas estão protegidas com molas, para evitar rasgões das calças junto dos pedais. Acrescento: à esquerda está um militar, à direita uma criança.

Menos habitualmente, o fotógrafo remeteu-nos para um universo mais abstrato mas sem descuidar o labor. Um exemplo desta modalidade é "Bicicleta", composição simétrica com troncos de madeira, certamente guardados em armazém. Cada tronco é um ponto branco de diferente tamanho. A bicicleta, a pá e as roupas constituem elementos suplementares de composição. Apesar de ser uma imagem a preto e branco, há cores distintas em cada um desses objetos.