segunda-feira, 5 de setembro de 2005

LER UMA FOTOGRAFIA

Pierre Bourdieu, em Un art moyen (1965), escreve sobre a fotografia e os hábitos das classes populares, num tempo em que a fotografia se desenvolvia (finais do século XIX). Se o círculo principal da vida popular é a família e os seus acontecimentos (um nascimento, um casamento, uma reunião, o casal, os filhos, a pose frontal), é possível que a fotografia siga esses momentos. A recolha regular de imagens acompanha as cenas principais da vida quotidiana. Deste modo, o álbum de família constrói-se segundo a "verdade da recordação social" ou a ideia do realismo fotográfico (num momento em que as classes economicamente fortes ainda recorriam à pintura, ao retrato, nome que ficou depois na fotografia).

O que me atrai nesta fotografia ao lado, datada eventualmente de meados dos anos 1950, é a postura das crianças, junto a uma pessoa bastante velha e possivelmente doente (está em pijama apesar de conservar sapatos de sair). A criança da esquerda, a mais pequena, ainda devia usar fraldas, o que a desequilibra no andar. Usa um estranho chapéu, lembrando modelos de mulheres holandesas de meados do século XVII ou XVIII. As duas outras crianças olham a câmara, juntamente com o velho. São possivelmente netos e avô: a criança do meio está meio desconfiada e o rapazinho tem um leve sorriso. As meninas apoiam-se nas pernas de uma senhora (a avó?), num sinal de garantia de protecção perante o intruso da fotografia; o menino está mais livre, mas tem uma mão adulta a ele ligado. Fixo-me agora no calçado das crianças: sandálias para as meninas, botas muito gastas e meias descaídas para o rapaz. Os joelhos deste parecem-me com feridas recentes. Talvez porque gastasse o seu tempo a dar chutos numa bola em terreno duro; as quedas seriam responsáveis pelos joelhos ensanguentados.

Qual terá sido o motivo da reunião? Um encontro de familiares que já não se viam há muito tempo? O aniversário de um dos presentes? A visita a um velho que estaria a morrer? E onde estão as crianças hoje? Ainda vivem? E onde vivem? O que fazem? Curiosidades que não saberemos responder, pois nem sequer conhecemos o nome do fotógrafo.

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma das forças da fotografia é podermos inventar mundos a partir de pedaços de realidade de que não conhecemos os contornos.