DEZ ANOS DE HISTÓRIA DA SIC (1992-2002). O QUE MUDOU NO PANORAMA AUDIOVISUAL PORTUGUÊS
[O texto que apresento de seguida foi publicado numa forma mais profunda na revista Observatório, nº 6, de Novembro de 2002, do Obercom. Dada a sua dimensão, o texto é partido em várias parcelas. A bibliografia aqui apontada acompanhará a última mensagem sobre este tema. Como o título indica, cobre o período de 1992 a 2002]
Apresentação
A emissão da SIC iniciava-se a 6 de Outubro de 1992, após um longo período de monopólio da RTP e de discussão sobre a necessidade de haver ou não televisão privada, que animara bastante a opinião pública e os decisores políticos. A segunda metade da década de 1980 e os anos seguintes assistiriam a uma profunda mudança na área da comunicação social em Portugal. Em 1987, o programa eleitoral do PSD propusera a venda da totalidade dos jornais nacionalizados e a existência de um serviço público mínimo na televisão e na rádio. Alguns factores relevantes nesse período – para além da televisão privada – seriam o nascimento do Público (1990) como jornal de referência, a privatização do Diário de Notícias (1991) e sua transformação gráfica e editorial (1992), a privatização da Rádio Comercial e o aparecimento de uma rádio dedicada às notícias (TSF). Grupos empresariais (Lusomundo, Sonae) associavam-se à comunicação social, dentro da onda liberalizadora que percorreu o país governado por Cavaco Silva.
O texto ilustra alguns dos momentos mais importantes da estação de televisão SIC, entre 1992 e 2002. Quotas de mercado, estratificação sócio-cultural dos espectadores da estação, principais períodos da vida da estação, informação, programas e figuras emblemáticas, passagem de canal generalista para a realidade de canais temáticos e relação da estação televisiva com o Estado constituem alguns dos traços a desenvolver nas próximas páginas. Apesar da atenção específica à história da SIC, a vida de um canal faz-se por comparação com outros canais e a sociedade em geral, pelo que algumas notas são produzidas tendo em conta esta compreensão.
A afirmação de um canal de televisão através da informação
Em termos de audiência, a progressão da SIC foi notável. A estação atingia a liderança do mercado em escassos três anos após o seu arranque, com 41,4% de share, contra 38,4% da RTP e 13,8% da TVI (Obercom, 2002). O sucesso deveu-se à existência de uma grelha diversificada em informação, reportagem, documentário, infantis, juvenis, séries, comédias, cinema e entretenimento geral, em que a produção nacional se associou a uma linha de programação popular do canal privado (Lopes, 1995). Gente nova e muito profissional a fazer televisão, uma outra maneira de trabalhar a informação capaz de servir as elites, fartas das notícias que veiculam fontes oficiais e do aparelho de Estado, e a evidente orientação para uma programação de agrado a públicos mais populares – a televisão do povo (Torres, 1998: 75), com uma estratificação cuidada dos grupos-alvo a privilegiar – figuraram nas estratégias dos responsáveis da estação, em especial Emídio Rangel, o que fez rápida mossa numa RTP apática. A estratificação sócio-económica dos telespectadores da SIC trabalhada nos primeiros anos da SIC apontava para as seguintes características: público maioritariamente feminino, pessoas da classe C2 e do grupo etário entre os 4 e os 14 anos. Como pano de fundo, o optimismo e a fé na iniciativa privada vividas na sociedade portuguesa, no princípio da década de 1990, o que estimulou a popularidade da estação recém-aparecida.
Uma grande aposta do canal privado foi a informação, que, por atingir o dobro do tempo dispensado pelos outros canais portugueses, significou a inversão da tendência dominante na Europa (Traquina, 1997: 65). O modelo CNN, de reinventar as notícias, criar histórias a partir de elementos menos visíveis dos acontecimentos e relevar os magazines de grande informação, no sentido dado por Küng-Shankleman (2000: 120), esteve na base do jornalismo da SIC, e que podemos admirar com mais consistência na SIC Notícias. O noticiário da SIC (Jornal da Noite) ultrapassaria o da RTP1 (Telejornal) em Junho de 1995, cederia a seguir à RTP1 mas voltou a liderar a partir de Setembro, assumindo a dianteira definitiva durante anos a fio. Nesse momento (Setembro de 1995), as eleições legislativas foram seguidas na SIC mais do que nas outras estações. A SIC promoveu momentos especiais de informação – os debates políticos entre António Guterres e Fernando Nogueira e entre Jorge Sampaio e Aníbal Cavaco Silva, momentos decisivos para a vitória dos dirigentes socialistas nas eleições que se avizinhavam. A política e a sua discussão faziam-se mais no canal privado do que na empresa pública, constantemente conotada com o poder instituído.
Um documentário polémico, por “parecer contra a SIC” (Mariana Otero, Cette télévision est la vôtre), revelou as razões de sucesso do canal, em especial a componente informativa. Das razões, Otero destacou o profissionalismo de toda a equipa da SIC, dos jornalistas às pessoas da área comercial, a atenção dada aos produtos televisivos, a articulação entre os vários sectores da estação e a medição constante do impacto popular nas audiências (Torres, 1998: 37). A realizadora convencera os responsáveis e colaboradores da SIC a deixarem-na filmar o quotidiano da estação.
Das características iniciais dos noticiários da SIC, ressaltaram o rigor, a credibilidade e a actualidade. Como resultado da qualidade das reportagens, os prémios começaram a ser uma rotina dentro da estação. Assim, em 1996, a reportagem Os meninos de Angola, de Cândida Pinto, obteve um prémio no FIGRA (“Festival International du Grand Reportage et du Document d’Actualité”). Em 1997, a SIC ganharia seis prémios ainda na área de Grande Reportagem. Ao rigor e actualidade juntou-se a mobilidade do estúdio do noticiário. A ideia da mobilidade acompanhou, de certo modo, o modelo de presidência aberta, que Mário Soares inaugurara em 1986, quase desde o princípio da sua Presidência da República, no sentido de conhecer bem a realidade portuguesa (Serrano, 2002: 117). Emprega-se o estúdio móvel em acontecimentos pré-determinados, de grande solenidade ou nível visual e ligados à proximidade. Foi assim que a SIC transmitiu noticiários directamente, por exemplo, da Expo 98, da ponte Vasco da Gama, da Feira do Livro, do Porto (nas festas do S. João, em Junho de 2002). O estúdio móvel foi utilizado, pela primeira vez na história da televisão portuguesa, em 1997. O principal rosto da informação da SIC, José Alberto Carvalho, apresentou o noticiário do Oceanário, na inauguração da Expo 98, e, em Abril de 1998, na inauguração da ponte Vasco da Gama. Nesta ocasião, a SIC passou imagens de helicóptero, mostrando o almoço servido a quinze mil pessoas, objectivo para bater um recorde e entrar no Guiness.
Lentamente, porém, as notícias tenderam para o fait-divers, o crime e a catástrofe (Brandão, 2002), efeito que atravessou os noticiários de todos os canais, numa tematização nuclear de política-sociedade-cultura-desporto-fait-divers (Lopes, 1999). Para contrariar este efeito de erosão, a imagem da informação da SIC foi alterada quando o canal atingiu os cinco anos de actividade. Assim, em 1997, apresentou um novo cenário dos noticiários, bem como o seu aspecto gráfico e um rejuvenescimento do logótipo. O cenário incluía displays de informação ao lado e por detrás do pivô, com informação suplementar, o que criou a imagem de marca do canal. Ainda não era um ecrã idêntico ao das múltiplas janelas da página da internet, com um oráculo a correr no rodapé, como ocorreria já na passagem para o novo século, mas aproximava-se disso. Os dirigentes do canal justificaram o investimento no cenário da informação e símbolos com as quase quatro horas de emissão diária dos noticiários. À espectacularização do cenário e acompanhamento do acontecimento no local correspondeu um maior número de vozes populares, o que produzia um novo efeito nas notícias. Paralelamente, os noticiários aumentavam de duração – acima de uma hora –, enquanto se dava mais tempo à promoção de programas dentro do telejornal numa contaminação de géneros.
As notícias davam conta dos acontecimentos previstos alegres (as inaugurações acima referidas), mas os jornalistas também se deslocavam e faziam trabalhos em directo quando havia acontecimentos imprevistos tristes (morte de Amália Rodrigues, em Outubro de 1999; queda da ponte de Entre-os-Rios, em Março de 2001). O luto das palavras e da roupa foi sinal identificador dos jornalistas da SIC nos dias imediatos à queda da ponte. O trabalho em directo constituiu, aliás, uma imagem de marca distintiva da SIC, origem de muitos prémios aos seus jornalistas, alguns deles atrás assinalados. E também as reportagens a locais longínquos. 1999 foi, por exemplo, um dos anos de mais trabalho em termos de cobertura de acontecimentos nacionais e internacionais, tais como os trabalhos feitos em Timor-Leste, após os tristes acontecimentos que assolaram a antiga colónia portuguesa, nas guerras na Guiné-Bissau e no Kosovo e na transferência de soberania de Macau para a China.
Além de José Alberto Carvalho, emergiram duas outras figuras emblemáticas no domínio da informação: Miguel Sousa Tavares, que apresentava o Jornal da Noite de domingo, e Margarida Marante, que fazia uma entrevista após o noticiário das 20 horas de sábado. Os dois jornalistas tinham ainda um programa comum, à terça-feira, o Crossfire. Um programa de informação muito considerado seria o moderado por Carlos Andrade, Flashback. Composto por deputados de vários partidos (casos de Pacheco Pereira e José Magalhães), era aceso o debate estabelecido. O sucesso passou também nas ondas da rádio TSF. Quanto a outra informação principal da SIC neste período de 1992 a 1999, relevo ainda para os referendos da despenalização do aborto e da regionalização (1998) e entrega a José Saramago do Nobel da Literatura.
Como resultado do crescimento da actividade da estação, quer na informação quer na programação e difusão, os seus recursos humanos cresceram: de 319 em 1994 para 425 em 2000 (SIC, Relatórios de Gestão Referentes aos Exercícios).
[continua]
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