HERRUMBRE [BARBÁRIE]
Como se pode associar o bailado às indústrias culturais? Pelos elementos de reprodutibilidade técnicas, como Walter Benjamin explicou, e pela cadeia de valor defendida pelos economistas da cultura e das indústrias culturais, caso de David Hesmondhalgh. É pela via dos catálogos que permanecem duradouros e das críticas de arte publicadas nos media que entro no espectáculo levado à cena entre 2 e 7 de Agosto no Gran Teatre del Liceu (Barcelona), pela Compañía Nacional de Danza (de Espanha), dirigida artisticamente por Nacho Duato. Como base, sirvo-me do catálogo e das críticas publicadas nos jornais El Pais (Madrid) e La Vanguardia (Barcelona), editadas em 4 de Agosto sobre a estreia ocorrida na segunda-feira dia 2.
O que diz o catálogo?
A violência chega-nos a casa através do uso quotidiano da televisão. Uma imagem dos prisioneiros afegãos na prisão de Guantanamo serviu de leitmotiv para a coreografia de Nacho Duato, estreada em absoluto no dia 2 de Agosto. Por isso, o horror - lê-se no catálogo, em texto assinado por Carmen del Val - faz parte da nossa vida diária. O bailarino e, desde 1990, responsável pela companhia espanhola de dança consideraria que, "cansado de ver imagens na televisão e na imprensa de todo o tipo de violência e tortura", decidiu passar para o bailado essas cenas de horror.
E fez Herrumbre, uma violentíssima peça de 65 minutos, como será raro assistir. Para além das tragédias do Afeganistão e do Iraque, em Duato estão presentes, a montante, os crimes do 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos e, a juzante, do 11 de Março de 2004 em Madrid. O cenário, centrado numa jaula, em que decorrem constantes actos de tortura e violação, é servido por uma mistura de música para violoncelo electrónico (David Darling, Dark Wood) e uma partitura constituída por ruídos de metal, que recriam ambientes de prisão e de golpes (Sergio Caballero).
O que dizem os jornais?
No El Pais, a crítica é Carmen del Val, a mesma que encontramos no catálogo. Com o título "Belo e surpreendente", a jornalista escreve que o bailarino e coreógrafo procura despertar as consciências face à indiferença que provoca o horror da tortura. Criar uma coreografia que pode chegar a ser formosa sobre um tema tão escabroso como a tortura não era tarefa fácil, e Duato tê-lo-á conseguido. Mais à frente, Carmen del Val escreve: "No final, a tensão converte-se em calor, o que emanou da ovação de um público excitado posto de pé". Para Joaquim Noguero, de La Vanguardia [a imagem abaixo reproduz parcialmente a página deste jornal], a peça de Duato fala-nos "sem ambiguidades da tortura, da dignidade e da indignidade humanas, da memória como homenagem aos mártires dessa ignomínia, recordados numa bela cena final em que o cenário se enche de velas". Mas, ao contrário da jornalista do El Pais, Noguero escreve sobre parte do público que assobiou a peça, embora a maioria aumentasse "nos aplausos e nos bravos para sufocar essa tendência de protesto".
Apesar da beleza do "grupo de mulheres com os seus braços suplicantes asfixiados pela opressão" e do contraste dos torturadores, "agressivo e com olhar desafiante sem um resquício para a piedade", como escreveu Carmen del Val, a verdade é que uma fatia pequena do público não apreciou a peça. Para isso contribuiu o cenário do iraquiano Jaffar Chalabi, que idealizou uma grande estrutura metálica amovível, parecendo-se com a fachada de uma prisão ou a porta de uma jaula. Por vezes, a posição da estrutura e a dança dos bailarinos, apoiada em iluminação convincente, deixava os espectadores tão aterrados como se vivessem fielmente a situação. Mas, sabe-se, há, em qualquer situação, fantasmas; nem toda a gente acha que a guerra do Iraque ou a prisão em Guantanamo merecem críticas de maior, porque o ponto de partida foi a injustiça. E o bailado é uma arte da beleza e da harmonia, para além da crueldade humana. As duas críticas jornalísticas desiguais face a um mesmo espectáculo dão conta das múltiplas leituras que fazemos do mundo. Logo: falar em objectividade no jornalismo levanta obstáculos.
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