quinta-feira, 9 de dezembro de 2004

Novela Quinta das Celebridades

A Quinta das celebridades é um fenómeno das indústrias culturais a que não posso desvincular-me do seu estudo. Apesar de programa televisivo orientado para as classes C2, D e E, também as classes sócio-económicas-profissionais A, B e C1 vêem o programa, embora o confessem de modo envergonhado. O voyeurismo é uma das razões porque vêem. Ou escapismo, se preferirem.

quinta1.JPGMas interessa-me também analisar o fenómeno das revistas cor-de-rosa, quase dedicadas em exclusivo - em termos de capas - ao programa da TVI chamo-lhe programa e não reality-show, pois se trata mais de uma telenovela do que um programa real, com um forte recurso a um guião pré-formado e à montagem).

Seleccionei três revistas, todas custando o mesmo preço: €1,25. Na Nova Gente, o título é: Paula Coelho conta toda a verdade. Tira o passado a limpo e desmente.... Na VIP, pertencente como a anterior ao grupo Impala, o título é: Bela e sensual em Marrocos. Ana Afonso: "os sentimentos do Frota por mim são verdadeiros". Já na TV Mais, da Edimpresa, o título é: Betty Grafstein revela: "Passou a noite a dar-me beijos na boca". Friso que as observações aqui produzidas não tem em mente valores de gosto ou moral (se for por este tipo de objectivos, a sua análise negativa não me permitiria ir mais à frente).

Ana Afonso, Paula Coelho, José Castelo Branco (e a sua mulher Betty Grafstein, somente convidada para um serão), Alexandre Frota e Cinha Jardim fazem parte do elenco inicial do reality-show. As mulheres aqui nomeadas já sairam do programa, alimentando as revistas com entrevistas e photo-opportunities. Retirando Cinha Jardim, já presença longínqua das revistas do coração, eu não conhecia mais ninguém. E quase ninguém conhecia estes nomes (claro, os "especialistas" conheciam Paula Coelho, a apresentadora do Nutícias).

Modelos de dominação e de subordinação

Olhando o programa de televisão e lendo as revistas podem encontrar-se duas linhas de personalidades, que separam os géneros para cada lado: os homens são fortes, as mullheres frágeis. Dito de outro modo, os homens representam dois subtipos mas ambos dominantes e vitoriosos na narrativa televisiva (embora tocando extremos do ponto de vista dos estereótipos: Alexandre Frota tem uma profissão pouco recomendável como actor de filmes pornográficos, Castelo Branco tem uma sexualidade ambígua). A narrativa da Quinta assentou, desde o começo, nestes dois elementos (inicialmente, as sínteses do programa quase que só mostravam os dois, para maior reconhecimento e fixação nas audiências).

Já quanto às mulheres, possuem carácteres dominados, em busca da orientação superior masculina. Olhando melhor as capas das revistas, as mulheres estão prontas a "vender-se". As fotografias roçam entre o erótico e o pornográfico: Ana Afonso, mais jovem, está ávida de novas conquistas (embora confessando "sentimentos" de Frota), Paula Coelho, mais velha, sabe que a idade é um factor inibidor da sedução feminina (confessa manter a paixão por um "antigo" namorado). A meu ver, programa e revistas traçam uma postura dominante machista. Dito de outra maneira: as revistas mostram mulheres sozinhas que procuram companhia masculina.

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As revistas reconstituem a narrativa da televisão. Se o programa da TVI tem cenários baratos e repetitivos (tudo se passa num só espaço), as revistas alargam essa dimensão. Podemos dizer que, enquanto numa telenovela com raízes históricas a produção de cenários é cara, o custo do cenário do reality-show é muito inferior mas complementado pelas histórias saídas nas publicações. Boatos e intrigas de menor peso alimentam uma curiosidade que circula entre televisão e revistas. Estas, por seu turno, rodam personagens, privilegiam ou inventam pequenas cenas familiares, negócios e dissidências (visita de Betty Grafstein à quinta, pedido de maior remuneração de Cinha Jardim e Castelo Branco, comercialização dos filmes pornográficos de Frota, alguém que diz estar grávida de Frota). Além disso, as revistas fazem publicidade (pelo menos indirecta): Betty Grafstein vestia um vestido Valentino e mala e sapatos Dior quando entrou no serão da Quinta.

Efeitos das revistas e reciprocidade entre estas e a televisão
As revistas funcionam em torno de um centro que é o programa da televisão, mas alimentam este. Posso concluir que existem vários efeitos: 1) repetição (as personalidades passam pelas publicações com variações em torno de um tema principal), 2) entreajuda (a necessidade mútua de publicitação de factos e personalidades entre televisão e revistas), e 3) alavanca, caso da revista do grupo de Pinto Balsemão, com promoção do programa de Herman José, o Quintal dos ranhosos, que critica a Quinta.

Reforça-se a ideia de complementaridade e de circularidade nas narrativas da televisão e das revistas: além da cena de entrada na Quinta da mulher de Castelo Branco, também as filhas de Cinha Jardim visitaram a mãe e Ana Afonso esteve com Alexandre Frota, após a expulsão daquela. O dispositivo narrativo afasta-se do criado no Big Brother, em que os concorrentes expulsos não podiam regressar ao local. A maleabilidade na saída e entrada de personagens aproxima-se do modelo de novela clássica, permitindo uma recomposição de papéis a todo o momento, o que serve para captar melhor a audiência, que também aprecia as lutas entre bons e maus, entre papéis simpáticos e altivos.

Desenham-se histórias autónomas das personagens (os que ainda estão dentro e os que estão fora), criando uma rede de situações e de acontecimentos - o elemento fulcral de uma novela, acima assinalado. Neste caso, existe um número variado de argumentistas, não operando a partir de um centro (a produção) mas segundo estratégias próprias de cada meio de comunicação. A isto junta-se a ideia de que os media - neste caso, a televisão e as revistas - se articulam num esforço de ganhos (visibilidade, financeiros) comuns, apesar da concorrência entre grupos mediáticos.

Uma última constatação neste muito breve sumário das características das revistas de coração em volta de um tema: apesar do grupo-alvo principal ser o género feminino em geral, haverá uma distinção mais fina. A Caras dirige-se para um público levemente mais culto enquanto as revistas aqui analisadas procuram um público ainda menos ambicioso em objectivos informativos. Mas há ainda a equacionar o fenómeno da canibalização: a Impala, por exemplo, possui duas revistas num segmento de mercado similar, a Nova Gente e a VIP, cujas capas têm como assunto principal o reality-show. Isto levará, com certeza, ao desaparecimento de uma das publicações.

A não ser que haja uma estratégia agressiva de capas (embora ambas, nesta edição, se sustentem em fotografias ousadas, um nú "artístico" e um biquini). Isto é, as revistas são orientadas para uma audiência feminina mas a que o público masculino se rende.

2 comentários:

Anónimo disse...

Os media transformaram-se numa indústria onde o importante, quer em termos de objectivos como de viabilidade, é a do lucro nu e cru. Tudo o que o é dito neste post é uma constatação real da dinâmica que existe entre os vários meios de comunicação. Importante é salientar que existem características específicas que têm vindo a ser depuradas ao longo da história na evolução dos media enquanto indústria. De início o factor concorrência baseava-se na acção, através de contra-propostas que visavam servir de alternativa a produtos de outras empresas media, no caso da televisão, na procura de esbater a diferença do share de audiências. Outra ideia, rentabilizar o lucro pela extensão de um produto exposto num media, para outros media dentro do mesmo grupo económico. O que acontece hoje, não é o agir da acção mas sim da reacção, seguir a corrente de sucesso que um programa da concorrência tem, procurando lucrar com o investimeno alheio. O fenómeno da Quinta das Celebridades na TVI, tem uma duração própria e não serve de modelo na conquista da assiduidade do público. É um fenómeno localizado, que serve de impulso orgânico de um grupo media, mas que não é eterno. Outra questão, a saturação dá extensão do programa nas revistas do grupo não acabam na extinção de uma delas, pois existem sempre formas de enquadrar o fenómeno explorando perspectivas diferente: as personagens dentro, as que estão fora, situações intermédias, relacionadas, por exemplo. Para além disso, já Dominique Wolton falava na heterogeneidade do grande público, o que pode ser "trabalhado" pelo criar de objectivos subtis que diferenciem a observação de um fenómeno por revistas equivalente dentro do mesmo grupo media empresarial. É uma estratégia em que o grupo fica sempre a ganhar, mesmo que implique alternar o plano em que se colocam as revistas, procurando "dividir o mal pelas aldeias"

Rogério Santos disse...

Muito obrigado pelo rigor e extensão da observação. Enriquece o meu escrito. Tenho pena de não haver identificação da sua parte. Continue a preferir o blogue.