quarta-feira, 9 de março de 2005

ANDREY TARKOVSKY E CLINT EASTWOOD

[para Alexandra Barreto, do blogue seta despedida]

1) Escrevo de memória sobre Andrey Tarkovsky. Vi Andrei Rubliev (ou Andrei Rublyov), Nostalghia e Stalker na primeira metade da década de 1980, num cinema provavelmente já desaparecido do Porto. A água (em jorro ou em pingos, a que a montagem sonora dava mais relevo), o fogo (ou as velas em Nosthalgia), o caminhar circular dentro de um vagão de reparações num espaço estranho guardado por soldados e máquinas de guerra (Stalker), ou a pintura que se redescobre passando do preto e branco para a cor em Andrey Rubliev, fizeram-me apreciar aquele cineasta russo, prematuramente desaparecido. Aquando da sua morte, eu interroguei-me sobre a injustiça da perda de alguém que prometia - se não um corte epistemológico no cinema - um repensar da estética: os temas, as inquietações mentais, os planos cinematográficos, a ligação entre cinema, literatura, pintura e música (ou sonoridades). Lia avidamente o que ele e dele se dizia. Ficou uma memória - a que, como em qualquer biografia pessoal, eu juntei as minhas próprias vivências, leituras e amizades da época.

2) De Clint Eastwood, mantenho uma memória antiga de intérprete de filmes ligeiros, que se consomem e se substituem pelo próximo. Se quisermos, a aplicação da mcdonaldização ao cinema. Eastwood aparece-me como o protótipo de intérprete de cowboy, sujeito de pensamento rápido mas superficial. Logo: longe da metafísica ou das questões de consciência estética e moral de Tarkovsky. E sem sequer o crédito de ter morrido cedo e longe da sua pátria, que o amava pouco na altura do seu desaparecimento (vivia na Itália, que o protegeu).

Mas Clint Eastwood tornou-se, ele também, alguém que faz filmes a reservar na memória. Trabalhando gente comum (pessoas vulgares), que tem profissões quase no extremo inferior: polícias, antigos bandidos ou gente que trabalha num sítio sem qualquer atractividade mas pela necessidade vital do dinheiro. Foi o caso de Mystic River. Se quisermos, na narrativa do filme, o único rosto feliz e despreocupado acabaria por desaparecer assassinada. Já no filme mais recente, Million dollar baby, o realizador volta a entrar no nível mínimo da subsistência humana. Uma candidata a pugilista vale muito menos que uma discreta empregada de mesa. É neste fio da navalha (a expressão vale o que vale) que eu vejo a grandeza do filme.

3) Em Portugal, os temas de Tarkovsky e Eastwood são, com toda a certeza, alheios ao nosso modo de pensar ou agir. Excêntricos, no sentido de fora do centro das nossas preocupações. Mas em ambos há pontos comuns: o olhar os rostos, o perder-se na imensidão da matéria. Já quanto ao sentir religioso não poderei equiparar ou distanciar, pois ele é permanente em Tarkovsky e pontual em Eastwood. E noto óbvios pontos divergentes: no russo, o cinema é artesanato, sentimento profundo na construção de cada plano; no americano, o cinema é indústria, os planos obedecem a um ritmo da cultura do seu país, o tema é próximo das pessoas comuns. No russo, a aproximação ao destino incompreendido dos indivíduos, que lhe reservam um olhar místico; no americano, uma quase aceitação pragmática desse destino incompreendido.

3 comentários:

Alexandra disse...

Muito interessante este confronto entre Tarkovsky e C. Eastwood. Curiosamente, acaba por destacar algumas das melhores características do realizador americano.

Conheço mal a filmografia de Clint Eastwood. Falhei, por exemplo, filmes como «Unforgiven» e «Mystic River», pelo não me atrevo a tecer considerações gerais sobre a obra. Especificamente em relação a «Million Dollar Baby», posso dizer que uma das coisas que menos me agradou nele se relaciona com o facto de a história já vir «pensada», de o filme pensar a história por nós. Não há ali qualquer interrogação. Não se põe nada em causa. (Acho que é a isso que o Rogério se refere quando fala de «aceitação pragmática do destino».)
O mesmo não acontece quando vemos um filme de Tarkovsky.
De um filme de Tarkovsky saímos a pensar.

(Mas isto é uma opinião pessoal, claro.)

Anónimo disse...

Os herois de Eastwood sabem bem que não podem modificar muita coisa, por isso pode parecer que não se pôe nada em causa. No entanto vemos que apesar de todos eles saberem que não podem escapar ao seu destino, há coisas que não podem deixar de fazer mesmo que no final não fiquem necessáriamente melhores. È assim em Mystic River, Unforgiven e Bridges of Madison County. É um cineasta de pessoas a contas com passados e um moralidade própria que não querem trair.

Mário
retorta.net

manhã disse...

Concordo com o comentador anónimo. Desculpem a ingerência na discussão. Adoro os dois cineastas e penso que para além dos aspectos formais que são díspares há nos dois a mesma preocupação/admiração por pessoas que vivem situações limite, que as procuram e que de alguma maneira tentam vencer esses limites criados pela condição existencial. Esses limites são morais. Há uma espécie de vontade quase instintiva de ser livre, contra todas as possibilidades, contra todas as razões.