NA MINHA CIDADE NÃO ACONTECE NADA
Na minha cidade não acontece nada. Lisboa no cinema (anos 20 - cinema novo) é um texto de Tiago Baptista publicado no último número da revista Ler História. Um título tão (pouco) saboroso significa um texto intrigante? Ou interessante?
Trabalhando na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, obviamente que Tiago Baptista iria escrever sobre cinema. Melhor: sobre a representação cinematográfica de Lisboa entre o cinema mudo e o cinema novo (anos 1960). A sua tese é que, "salvo raríssimas excepções, Lisboa quase não surgiu nos filmes portugueses [até à década de 1960] e que as suas escassas representações retrataram menos uma realidade arquitectónica e urbanística concreta e reconhecível do que uma determinada ideia de cidade".
Há uma parte do texto aqui referenciado que quero destacar, a que diz respeito a Leitão de Barros e ao seu filme Lisboa, crónica anedótica (1930). Barros e António Lopes Ribeiro, vindos da crítica de cinema, e outros como Jorge Brum do Canto e Manoel de Oliveira desempenharam um papel de relevo "na defesa das vanguardas cinematográficas europeias e na actualização do cinema português", escreve Tiago Baptista. Mas esse caminho seria desviado com a afirmação do regime, caso das obras de Lopes Ribeiro. Curiosamente, o filme Lisboa, crónica anedótica teve um registo anormal; daí o interesse nele. É que Leitão de Barros mostrava no seu filme a Lisboa suja, vigarista e "cano-de-esgoto" (Baptista, 2005: 172).
Era o tempo da lei dos cem metros - pequenas películas exibidas antes da longa metragem em cada sessão. Isto levou à proliferação de más pequenas metragens que, com o tempo, foram esquecidas e destruídas porque, entendeu-se, a prata contida nas películas era mais valiosa que o seu conteúdo (hoje, muitas dessas imagens teriam um valor incalculável). Mas era também o tempo em que se pensava num "género específico de «filmes documentários de exportação»", o que não se encontrava no filme de Barros, como anotou o crítico de cinema, Alberto Armando Pereira. O filme, com o saloio e o conto do vigário, afirmava-se contra-corrente, sem qualquer alusão à cidade moderna, monumental, do anúncio luminoso, das avenidas novas e de António Ferro.
A pressão foi forte, por parte dos críticos como dos distribuidores, que Leitão de Barros se viu obrigado a fazer uma segunda versão, de exportação para o mercado brasileiro [imagem do realizador retirada do sítio do Instituto Camões]. As imagens menos gratificantes do original seriam substituídas pelos aspectos monumentais da cidade. O filme inicial mostrava um saloio (habitante rural dos arredores de Lisboa) a apalpar um manequim, rebanhos de carneiros a atravessarem as avenidas novas, as peixeiras do Cais do Sodré com os seus filhos nus dentro das canastras onde antes estava o peixe vendido.
Leitura: Tiago Baptista (2005). "Na minha cidade não acontece nada. Lisboa no cinema (anos 20 - cinema novo)". Ler História, 48: 167-184. Preço do volume: €13,10
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