UMA PERSPECTIVA IMPORTANTE: O PENSAMENTO DE MIÈGE (IV)
[continuação e conclusão do texto editado desde 19 de Setembro, baseado em La pensée communicationnelle, de Bernard Miège, editado em 1995 pela editora Pug, de Grenoble]
Etnografia da comunicação, etnometodologia e sociologia das interacções sociais
Os etnógrafos da comunicação, particularmente John Gumperz e Delleds Hymes, demarcam-se dos contributos linguísticos dominantes, e mesmo dos estudos sócio-linguísticos; o que lhes interessa são os actos da palavra em que constituem a unidade de base da comunicação verbal, que procuram apreender graças a um trabalho rigoroso de observação etnográfica das situações de comunicação.
O sociólogo Louis Quéré parte de uma crítica do que considera como sendo o paradigma principal das ciências da comunicação: o esquema emissor-receptor contribui para esterilizar a investigação sobre a comunicação. Um modo de comunicação não se pode reduzir a uma tecnologia de empacotamento e da transmissão das mensagens. Os enunciados postos em circulação no tecido social não agem como simples vectores de informação.
Quéré, que abandona as perspectivas traçadas por Jürgen Habermas para se colocar na filiação da teoria da sociabilidade de Georg Simmel, da teoria da acção comunicativa de G. H. Mead, da teoria da dimensão cénica da vida social de Erving Goffman e da etnometodologia de Harold Garfinkel e de Alfred Schütz, demonstra que uma análise das interacções comunicativas da vida quotidiana tem um alcance sociológico geral; este autor defende a desconstrução dos conceitos das diferentes teorias da comunicação em benefício da criação de processos concretos da organização interna das interacções, numa perspectiva interna, dinâmica e anti-reificante.
Quanto a Erving Goffman, a sua obra mais conhecida é Asiles, onde o autor mostra que o funcionamento de uma instituição controlada como um hospital psiquiátrico produz nos doentes uma série de "adaptações secundárias", negociadas com o pessoal do hospital: territórios reservados, redes internas de comunicação, actividades comerciais, construção de poderes paralelos. Ao contrário do funcionalismo, que se perspectiva dentro do sistema social, o interaccionismo põe o acento no papel do actor na construção do quotidiano. As investigações de Goffman não dependem todas da mesma orientação e muitas correntes da sociologia reconhecem-se nela.
Mas interessa fazer uma referência ao conceito de "quadro", com o qual a sociologia interaccionista propõe uma classificação dos efeitos de sentido nas interacções quotidianas (permitindo ir além das práticas linguísticas e ter em conta as relações de força estruturando as acções quotidianas); com efeito, o contexto das conversas nem sempre permite precisar o sentido da relação, apenas um "reenquadramento" em volta de estruturas da relação dual de comunicação permite aceder ao conhecimento da complexidade das interacções. As perspectivas da etnometodologia são próximas das de Erving Goffman, tornando-se mesmo difícil distingui-las. É sobretudo no estudo das "implicações sociais", nas actividades linguísticas e nos ritos sociais, a que se ligam, desde há meio século, Harold Garfinkel e outros, com o objectivo de actualizar as lógicas sociais à obra na vida de todos os dias.
O conhecimento social produz-se tacticamente na comunicação corrente, em especial na interacção verbal. Daí, a atenção específica que os etnometodólogos dão à linguagem para aceder ao saber implícito dos actores sociais.
As sociologias da técnica e da mediação
Parece que não se devem dissociar o desenvolvimento das técnicas de informação e da comunicação. A finalidade tecnológica implica que cada objecto técnico se adapte quase espontaneamente e sem deslocamento com a procura que lhe precedeu e às que se adaptam facilmente. O telefone móvel responde hoje a uma procura crescente de "comunicações" profissionais a todo o momento e em qualquer local. Apesar dos trabalhos dos historiadores dos meios, que insistem geralmente na complexidade, a lentidão e os insucessos imprevistos na inserção dos meios de comunicação (o telefone, entre outros exemplos, fora concebido para ser um "teatrofone" que permitisse aceder aos espectáculos de ópera e não para favorecer as trocas interindividuais; as técnicas de transmissão rádio demoraram mais de 20 anos antes de dar nascimento à radiodifusão; as tecnologias da informação para o grande público não foram concebidas para facilitar a troca de mensagens).
A emergência de novas máquinas de comunicar, mas também as modificações intervenientes no seio dos media audiovisuais de massa, levam a um desenvolvimento notável de investigações sociológicas, em reacção à concepção finalista. É em torno da questão das modalidades de difusão das técnicas de comunicação nas sociedades que se organiza a reflexão. Desde 1963, Everett Rogers propõe um modelo de análise difusionista: uma inovação é comunicada segundo certos canais aos membros do sistema social, e a sua difusão é tanto mais sólida quanto mais simples e adaptada aos valores do grupo de acolhimento; o modelo põe o acento na existência de etapas (informação, persuasão, decisão, aplicação, confirmação), na necessidade de distinguir diversas categorias de "adaptadores" (inovadores, adaptadores precoces, a maioria precoce, a maioria tardia, os retardatários) e no papel essencial de intermediários.
O modelo difusionista foi retomado sob versões mais ou menos sofisticadas pelos especialistas do marketing. Ela foi criticada por autores como Michael Callon e Bruno Latour, em que os inovadores devem procurar aliados para introduzir a heterogeneidade nos grupos-alvo; os inovadores devem poder traduzir os contributos dos aliados e os "interessar" para as novas técnicas.
Patrice Flichy, criticando o modelo da tradução, centrado no nível micro-social, indica que deve ter-se igualmente em conta os movimentos da técnica e do social na longa duração. O processo é "circular" e iterativo [reiterado, repetido]: uma vez capturado, a procura ajuda a modificar a oferta. Uma inovação só se torna estável se os actores técnicos conseguem criar uma aliança entre o quadro de funcionamento e o quadro de uso.
Para autores como Raymond Williams (os seus trabalhos sobre a história social da tecnologia da televisão, apesar de já contarem décadas, mantêm-se de uma actualidade surpreendente e aplicam-se aos novos meios), insiste-se na necessidade de substituir o estudo dos meios no quadro da transformação das relações sociais para tentar aprofundar a compreensão das interacções que unem a evolução social e a evolução das representações da evolução; os media não são concebidos como simples objectos técnicos, assumindo um dado número de funções sociais ou culturais, mas como os lugares onde se opera cada vez mais pelo simbólico e o discurso, a mediação do poder social.
A recepção das mensagens e a formação dos usos dos media
Pode dizer-se que a recepção era a dimensão escondida e negligenciada da comunicação. Mas hoje, os contributos têm-se multiplicado, pondo em primeiro lugar o leitor, o espectador, o utilizador, o consumidor. A ideia de "recepção negociada", proposta por Stuart Hall, supõe que os receptores descodificam as mensagens, modificando os significados preferenciais na base dos seus interesses e práticas culturais. A negociação torna-se a categoria principal da análise da recepção dos meios, contando com as práticas mais comuns que vão da recusa à adesão. Um grupo social negoceia a sua recepção a partir da sua cultura própria, da sua memória social específica, conhecimentos armazenados, recursos simbólicos.
Os indivíduos operam transacções entre o que vêem no ecrã ou página impressa e o que pensam eles mesmos. Os cultural studies britânicos reúnem-se em torno de autores cujos trabalhos se estendem durante cerca de meio século. Para além do já citado Raymond Williams, um outro contributo de primeiro plano foi o de Richard Hoggart, que estudou as práticas de leitura e a cultura popular da classe operária inglesa. A sua obra The uses of literacy (As utilizações da cultura, na tradução portuguesa) situa-se na convergência do estudo das práticas culturais, da literatura, da sociologia e das ciências políticas.
Em França, segundo Miège, a maioria dos trabalhos consideram a apropriação das novas máquinas de comunicar. Como explicar esta diferença? Sem dúvida, pelo facto do operador de telecomunicações, que encomenda as investigações, favorece este aspecto do conhecimento. Mas pode avançar-se com outras explicações: a presença de perspectivas estuturalistas da semiótica, o carácter ainda pouco legitimado das análises do discurso televisivo ou mesmo do discurso da imprensa; a dificuldade para as análises do discurso em obter metodologias rigorosas.
As "filosofias" da comunicação
O pensamento comunicacional constrói-se a partir de um pensamento sectorial, específico de certos domínios da actividade social. Nos anos de 1980, a comunicação torna-se lugar de produção, se não de sistemas filosóficos (no sentido técnico da expressão), pelo menos de doutrinas ou de interrogações de carácter filosófico. Ao contrário das teorias anglo-saxónicas (para muitos, a emergência do pensamento comunicacional), que explicitam raramente os seus fundamentos e convidam pouco à reflexão filosófica, algumas correntes contemporâneas da filosofia alemã colocam a comunicação no centro das suas interrogações e abrem-se aos debates heurísticos.
Um autor francês que interroga a emergência da comunicação é Jean Baudrillard, dizendo que a comunicação sucede, de qualquer modo, à comunicação. Onde a troca entre homens já não é regulada espontaneamente pelo consenso informal, produz-se um dispositivo formal, um artefacto colectivo que assegura a circulação do sentido. Daí que as técnicas e as ciências da comunicação concorrem para neutralizar os indivíduos, controla-se e reforça-se o seu fechamento na esfera privada. Tudo se comunica e nada se toca; a comunicação é a circulação pura.
Para o alemão Niklas Luhmann, que parte do princípio da auto-referência, há que repensar a comunicação política nas sociedades mediatizadas, marcadas pela supressão da intercompreensão natural e da intersubjectividade. Já Jürgen Habermas, por seu lado, influencia profundamente os que querem pensar, em termos novos, a função dos media na formação das opiniões, a circulação das ideias e a vida política. Inscrevendo-se na posteridade da escola de Frankfurt, as teses de Habermas apoiam-se no princípio da Publicidade (ou espaço público), onde se estuda a génese como faculdade de exercício crítico da razão, depois o declínio nas sociedades contemporâneas, sob o efeito da cultura de massa, da organização da vida política ao ritmo das sondagens e da "administração" da informação.
As posições de Habermas evoluiriam posteriormente. O conceito de intercompreensão reenvia para um acordo racionalmente motivado, obtido entre os participantes. Esta racionalidade pensa-se nos discursos favorecendo a argumentação e nas relações com o mundo dos que agem em termos comunicacionais. A teoria da acção comunicacional constitui um apoio considerável para as ciências da comunicação, mesmo se o espaço feito no seu seio aos media (cujo papel é ambivalente) é relativamente reduzido, se comparado com o interesse dado pelo autor na discussão e na argumentação (permitindo fundar as pretensões normativas de validade nas democracias modernas).
Interrogações actuais
A quase permanente liderança americana na investigação do pensamento comunicacional é, hoje, contrabalançada não por "escolas" nacionais mas pelas produções teóricas na Grã-Bretanha e França, entre outros países, que contribuem a estender as questões e as trocas científicas. E, sobretudo, a "necessidade" de uma maior segurança na ancoragem teórica vem do facto de os fenómenos informacionais e comunicacionais estão, por norma, no centro de um dado número de jogos de sociedade, entre os mais decisivos. A informação tem um valor estratégico, não apenas pela activação das discussões no seio do espaço público, mas sobretudo pela modernização das sociedades e a competição económica; as técnicas de comunicação começam a renovar as "técnicas intelectuais"; o sector dos produtos informacionais, organizado cada vez mais numa base industrial, é considerado pelos detentores de capitais como um dos produtores de valor e, seguramente, o sector da comunicação é um dos valores bolsistas em crescimento regular.
O antropólogo Jack Goody, em The domestication of savage mind, considera o contributo dos sistemas de comunicação, em particular a escrita, na passagem das sociedades de sistemas de pensamento (qualificados de) fechados para sociedades de sistemas de pensamento aberto: as primeiras caracterizam-se pela ausência de pensamento reflexivo e o funcionamento de um discurso social personalizado e propício às identificações; as segundas favorecendo os enunciados impessoais e o pensamento especulativo com uma distinção feita entre enunciado e enunciação.
Quanto à deriva futurológica, os teóricos da comunicação são cada vez menos numerosos quanto à promessa de um "mundo melhor" e um futuro feliz regulado pelas técnicas infográficas ou telecomandadas. Sociólogo da comunicação, Dominique Wolton interessa-se pelas relações entre comunicação e política, e pelas relações televisão/sociedade. Em Elogio do grande público, o autor interroga-se de onde vem a confiança dada à televisão generalista de massa, quando ele anunciara o seu declínio em favor da televisão fragmentada. Esta confiança advém do facto de assumir duas funções parcialmente contraditórias.
A televisão adequada ao espaço público democrático é a televisão generalista porque está à medida do espaço público democrático, na condição de não ser reduzida à baixa gama da televisão comercial. O interesse da televisão generalista é o de abordar todos os assuntos, mas a um certo nível de generalidade. O acento colocado no papel da televisão na formação e manutenção do laço social é uma proposição a reter.
O pensamento comunicacional constitui-se, assim, pelo contributo de autores (geralmente em ruptura com as suas disciplinas ou "escolas" de origem) e pela sistematização de concepções dependentes directamente da actividade profissional e social. Em certa medida, o que melhor define a comunicação é o conceito de campo tal como Pierre Bourdieu precisou: para que um campo ande, é necessário que tenha jogos e pessoas prontas a jogá-los, dotadas de aspectos que implicam o conhecimento e o reconhecimento das leis imanentes do jogo.
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