quinta-feira, 9 de março de 2006

IMAGEM ACÚSTICA

Quando temos o campo visual isolado, ou ele é inexistente, o recurso é a exploração sonora, o uso do sentido acústico. Ouvir, em suma, tem uma dimensão diferente do ver e do olhar (com este último a implicar já um trocar de códigos).

Ouvir pressupõe um tactear de distâncias em profundidade. O som do tiquetaque do relógio, a emissora de rádio, o riso das enfermeiras ou das empregadas auxiliares de saúde ocorrem a distâncias certamente distintas, mas que o ouvido (não treinado) não permite situar. O que obriga a uma construção, a uma interpretação. Do mesmo modo, o sinal sonoro de uma carrinha de marcha-atrás, ruído que nos é conhecido de experiências anteriores. Ou dos jovens que festejam a passagem de sexta-feira para sábado nos bares do Bairro Alto: os seus gritos e cantorias desafinadas ilustram o ar pouco sóbrio a essa hora da madrugada. E também o ruído dos caixotes do lixo a passarem a sua carga para um camião de recolha do lixo. O tactear das distâncias significa uma continuidade temporal. Apreendemos os sinais e organizamo-los sequencialmente.

A experiência dos sons é também a das palavras. E, ao contrário da imagem, a palavra precisa de significação. Diz-se que o cinema mudo tinha vantagens sobre o sonoro porque toda a gente entende uma imagem mas não uma língua desconhecida. Também se diz que as crianças entram facilmente em contacto com estrangeiros mesmo sem dominar a língua dos outros, pois os seus gestos têm significados universais (ou quase).

A exploração sonora é, a meu ver, mais complexa que a da imagem, pois precisa de ser reconstruida por nós. A palavra é, no geral, abstracta; vem-nos por sequências e nós temos de as encaixar num discurso. Daí a importância de graduar os sons (articulados ou não). Há os esperados, mas também os inesperados, os que magoam - pela intensidade, pela sonoridade. Os sons vão da música ao ruído, da harmonia ao sem organização, de ler uma poesia ao não entendido. Uns sons são, por isso, compreensíveis; outros, se novos, carecem de reconhecimento e comparação posterior. O que significa uma riqueza maior. Assim, a palavra, abstracta, quer ainda dizer da ordem do mais complexo, carecendo de aprendizagem, significação e conotação (exemplo da música contemporânea).

O mundo acústico é também do domínio do branco e preto, do 0 e 1, do som e do silêncio. Quando o silêncio surge, o ouvido permanece atento, à escuta, tenta apurar/descobrir os pequenos ruídos para além do silêncio e calcular distâncias e gestos associados a movimentos. Há lugar para a imaginação, para a reconstituição de significados (se os dados são nossos conhecidos do mundo visual) ou para a construção de significados (se os não conhecemos).

O movimento na acústica é sequencial. Apreendemos sons uns a seguir a outros. E notamos a distinção entre a brutalidade da imagem (descodificada rapidamente) com a sensibilidade do som (tacteado, por vezes; à procura de ser interpretado). Os sons precisam frequentemente de ser traduzidos. Daí o não concordar com a ideia de uma imagem vale mil palavras. A compreensão é mais complexa no som, que implica tradução ou esforço de leitura, caso da música.

[entrada pensada na madrugada de 19 para 20 de Janeiro, durante uma paragem de actividades, registada
aqui]

1 comentário:

gisela cañamero disse...

muito, muito interessante, esta perspectiva sobre o universo sonoro.