sexta-feira, 16 de junho de 2006

¿GRATUITO, DISSE?

Carlos Romero escreve hoje duas páginas no Público sobre serviços gratuitos no tempo da globalização digital. Em hipótese, acho interessante a ideia, mas duvido em termos de resultados. Aliás, o jornalista reconhece, no último parágrafo da primeira coluna, que estas "liberalidades" - como ler jornais gratuitos no mundo físico ou na internet, retirar músicas e telefonar gratuitamente - não ocorrem no "mundo duro" da alimentação, vestuário ou habitação.

Um economista poderia explicar isto muito melhor do que eu. Há domínios intangíveis, como a cultura, que podem ser do domínio do gratuito. Eu frequentei uma escola primária gratuita, na adolescência lia numa biblioteca onde não era obrigado a pagar, escuto rádio sem pagar qualquer valor (excepto uma pequena parcela que está/esteve escondida nas facturas da EDP) e vejo televisão de feixe hertziano também sem pagar. Entro num supermercado para ver marcas (e bens) que lá se vendem sem ser obrigado a comprar e consumir. Claro que se tem de distinguir, no mínimo, duas coisas: 1) há serviços públicos, gratuitos, porque fazem parte da obrigação do Estado para a formação dos seus cidadãos; 2) os bens que estão nos supermercados podem não ser adquiridos imediatamente, mas a lógica publicitária de exposição leva-me a um consumo futuro.

É evidente que a gratuitidade esconde custos. O Estado fornece serviços universais aos cidadãos, mas estes pagam impostos, na proporção dos seus rendimentos. O acesso à internet é pago e não é um serviço universal. E, além disso, acontece porque há infra-estruturas para a passagem dessa informação, tais como redes de telecomunicações, algumas pagas pelo Estado (a partir de dinheiro dos contribuintes) e outras por entidades privadas (que investem à espera de retorno financeiro).

Certamente é verdade que há informação válida na internet, mas também há muito lixo. Será que, se quiser fazer uma tese sobre Kant, a internet ajuda? E o saber dos especialistas de Kant está todo na internet? E, se quero escrever sobre cinema, sobre os últimos trabalhos sobre cinema, eles estão na internet? A rede tem múltiplos elementos, muitos deles úteis, mas estes também se pagam (revistas especializadas, informação financeira, notícias do dia em jornais como o próprio Público).

Talvez valha a pena acompanhar a evolução do sítio YouTube, tornado já o maior alojador de vídeos do mundo. Aqui, onde se apela à inovação, muitos dos pequenos vídeos são experiências sem qualquer consistência, isto é, têm valor nulo. E valor nulo num espaço gratuito é pura diversão, que não faz andar o mundo. Mas o que o YouTube suporta são valores emergentes que se declararão, num futuro próximo. Começou com uma espécie de clube do sítio, convidando a mostrar produções, passará certamente a festival e rentabilizar-se-á com a publicidade a arranjar. O lado que se deve felicitar em experiências como esta é a capacidade de risco por um projecto do qual não se sabe, no verdadeiro começo, o grau de sucesso.

Aconselharia alguma prudência a quem escreve sobre serviços gratuitos de internet. A lógica de negócio é, aparentemente, diferente da lógica de outros negócios até aqui. Eu escrevo no Blogger há mais de três anos e ainda não me debitaram qualquer valor; contudo, eu contribui para a valorização desse negócio - pela fidelização e pela leitura de anúncios. Também eu fiquei deslumbrado quando a televisão pública (e, depois, a privada) me fizeram entrar em casa programas tão variados como notícias e espectáculos - teatro, cinema, novelas -, sem eu me deslocar de casa e nada pagar. O negócio da televisão privada passa pelo custo zero a troco de publicidade entre programas ou dentro deles (product placement). E o break even point (momento de começo de lucro) demora sempre anos a ser alcançado, pelo que o novo negócio só aparentemente é diferente do de outros tempos. Para mim, o gratuito tem dois fundamentos ideológicos: 1) propaganda (a televisão era para educar as massas), 2) consumo (sem gasto, mas suportado pela publicidade).

E há outra questão, passada sempre em branco quando escrevemos sobre sociologia da comunicação. Os primeiros meios já ambicionavam à interactividade. O telefone é um exemplo: falamos e ouvimos o nosso interlocutor (um para um). A plataforma tecnológica da rádio e da televisão não permite isso (é de um para todos), excepto as chamadas telefónicas para um animador do programa. Para haver interactividade, cada um de nós precisava de ter um emissor sintonizado no mesmo canal (frequência). Essa dificuldade foi superada com a ideia de rede (todos com todos), já marginalmente experimentada pelas redes de transmissão (rádio e televisão num país, Eurovisão em espectáculos, embora a filosofia fundamental fosse a progressão da transmissão ponto a ponto). O receptor passivo tornou-se activo (teoria da recepção em Hall) e, agora, o receptor é também produtor. A tecnologia associou-se à economia e relançou o papel de cada agente social, reduzindo (ou possibilitando a redução) da fronteira entre receptor e emissor. Hoje, todo o mundo pode ser produtor de conteúdos e partilhá-los (uso, oferta) ou trocá-los a um determinado valor (lucro).

A prudência estende-se a outro domínio, e que o jornalista precisa de reflectir. Se eu e mais sessenta blogueiros nos associarmos e produzirmos um jornal online - com critérios jornalísticos e usando apenas o nosso tempo livre, com o eventual apoio publicitário - não estaremos a destruir o negócio do jornal de papel e o seu posto de trabalho? Se as empresas de telecomunicações por onde passa o tráfego pedirem o pagamento de uma "portagem" aos produtores de conteúdos e aos servidores, a gratuitidade pode ficar menos gratuita e mais dispendiosa? Claro que as empresas de telecomunicações também têm interesses nos servidores, apesar dos mais inovadores estarem fora do país - o que confere a Portugal e muitos outros países o estatuto de periféricos nos novos negócios (exemplo: não há uma Amazon de língua portuguesa).

Um terceiro nível de prudência - e, quiçá, o mais moralista. A vadiagem proposta por Agostinho da Silva (exposta nas duas páginas do jornal) não se aplica ao mundo inteiro. Os que precisam de trabalhar todos os dias - exactamente para comprar a alimentação, o vestuário e a habitação, o "mundo duro" de Carlos Romero - têm é de se preocupar com a existência do emprego ou do trabalho. Se este se "deslocalizar" para leste, o interesse em serviços gratuitos pela internet reduz-se substancialmente.

Último reparo: relacionar fotocopiadoras analógicas com globalização digital pode não dar o efeito pretendido. A aparente morte do analógico e o paradisíaco digital, mais a desmaterialização, ainda irão dar muito que falar. A edição de discos pode ser um primeiro passo: e se as editoras prescindissem na distribuição, o último elo da cadeia de valor, da digitalização, regressando ao analógico, como se faria o download gratuito? Se calhar, as editoras vão reflectir sobre esse assunto e sopesar vantagens e desvantagens face ao cobrar um euro por música em download. Por mim, prefiro viajar para os sítios reais e não ver filmes desses sítios.

Se calhar, o problema aqui colocado já não merece discussão. A mim, importa-me olhar a História e estabelecer comparações. Qualquer alteração social ou tecnológica não ocorre toda num só tempo e em todo o espaço. Uma mudança significa movimentos de progressão mas também de regressão. E os media anteriores, como a rádio e a televisão, quando surgiram, trouxeram promessas que nunca se cumpriram, por dificuldades variadas. O desenvolvimento intelectual e a harmonia social e cultural foram objectivos não cumpridos. Agora surge outra promessa tentadora: a gratuitidade. ¿Será para cumprir?

5 comentários:

sabine disse...

É s+o para dar os parabens ao autor deste texto lucido! (e nao percebi se aquele texto no Publico era opiniao ou noticia).

Gabriel Silva disse...

Parabéns, uma excelente reflexão «aberta».

Anónimo disse...

A grande questão não está em ser ou não gratuito, mas em ser ou não livre. A possibilidade de reapropriação da tecnologia no intuito da emancipação social e política só existe quando o utilizador pode modificar, moldar e adequar a plataforma que lhe é oferecida tendo em conta as suas necessidades e o seu contexto local, sem estar preso a um suporte, formato, empresa, etc. Isso remete para a filosofia do software livre e do copyleft, assente na colaboração e na partilha.

Hoje em dia, a qualidade de programas como o Firefox e o OpenOffice e de sistemas operativos como o Linux e o Ubuntu é indesmentível. Quem sabe se experiências como a YouTube, o brasileiro Overmundo (www.overmundo.com.br), netlabels como a portuguesa Merzbau (www.merzbau.pt.vu), já para não falar na Wikipedia poderão constituir uma cultura e um conhecimento que sejam simultaneamente livres, colaborativos e mais ricos do que os que nos são "impigidos" pelos media comerciais?

Leonor Areal disse...

Gostei dessa ideia de um jornal online feito por sessenta bloguistas. Eu alinhava.

Leonor Areal disse...

Gostei dessa ideia de um jornal online feito por sessenta bloguistas. Eu alinhava.