segunda-feira, 12 de junho de 2006

OS CAFÉS DA NOSSA VIDA

Hoje, vou falar de cafés, dos espaços públicos chamados cafés. Estes remontam ao começo do século XVIII, espalhando-se rapidamente por toda a Europa. Cereal introduzido por comerciantes vindos do médio oriente, era também por aqueles preparado. Se o café se misturou com a venda de outros produtos, nunca se aliou ao comércio do vinho, reservado para a taberna. O café é de outra estirpe social, embora haja quem o acompanhe com um “cheirinho” de bagaço, aguardente ou uísque [imagem ao lado: edifício do café e pastelaria Versailles, na Av. da República, em Lisboa, à noite, foto de qualidade reduzida].

A relevância social e histórica do café é a do espaço público. As pessoas encontravam-se e, enquanto tomavam a bebida, conversavam e discutiam sobre temas variados, dos mais comezinhos à política, à arte e à cultura. Formavam-se tertúlias onde os mais novos aprendiam escutando os mais especialistas, em conversas cujo fio de meada se perdia ao longo da discussão. Hoje ainda o fazemos, mas houve um período mítico onde essa explicação parece funcionar melhor. Existiu mesmo um filósofo alemão, chamado Habermas, que escreveu um livro extraordinário sobre espaços públicos, com o café a ser local de formação da opinião pública e política.

Esse tempo mítico é o da leitura de jornais e da troca de ideias que se seguia à leitura. Há cidades que recordam alguns desses cafés. Por exemplo, em Lisboa, fala-se do Gelo, já desaparecido, espaço de convívio de poetas e escritores, do Vavá, transformado em restaurante, local de discussão de cineastas e artistas ligados às artes plásticas, do Nicola, a evocar o poeta Bocage, da Brasileira, uma verdadeira pinacoteca do modernismo português, da Versailles, onde também se toma chá, da Mexicana, com um passarinheiro que quiseram destruir recentemente. Pontos de encontro, pontos de referência. E recordo os do Porto, cidade que também conheço bem: o Guarany, hoje renovado, o Imperial, tornado restaurante de fast-food mas que mantém os vitrais representando cenas da produção do café, o “Piolho”, onde se cruzavam os intelectuais transviados da universidade vizinha, o Majestic, do tempo da belle époque, contemporâneo do nascimento do animatógrafo e das rádios amadoras.

Cada um de nós recorda o café enquanto espaço social: uma leitura, uma conversa, um sorriso, um simples ver o movimento ou namorar. Reconstruo a minha biografia evocando os cafés das cidades onde vivi, trabalhei ou simplesmente conheci de trânsito para outros sítios, que incluem Aveiro (onde coabitava com uma soberba pastelaria), Caldas da Rainha (onde cheguei a jogar xadrez), Guimarães (onde todas as mesas estão ocupadas com pessoas lendo jornais), Beja (perto do teatro Pax Júlia e que ainda tem quase intacto o mobiliário de há trinta anos), Guarda (em dia muito frio). Alguns deles têm espaços arquitectónicos interiores de grande identidade ou com um atendimento muito personalizado. E, depois, há designações diferentes para a bebida ao longo do país. Enquanto em Lisboa e sul, ela se chama bica, nos cafés do Porto e Braga diz-se habitualmente cimbalino, abrindo muito a letra a, em lembrança de uma marca de máquinas de café. Ou, no Alentejo e também em Lisboa, se chama italiana ao café expresso curto. O expresso ou café de máquina opõe-se ao mais antigo café de saco, bebida a que acrescentavam, dizia-se, um rabo-de-bacalhau para dar um sabor diferente, o que nunca comprovei.

Das cidades que conheço fora do país, recordo os de Bruges (Bélgica), Saragoça (Espanha) e Praga (República Checa). Em Bruges, a arquitectura arte nova torna os espaços em sítios de acolhimento e prazer. Em Praga, existe à venda um livro sobre cafés e as personalidades políticas, das artes e da cultura que neles passaram. Ou seja: os cafés são espaços fundamentais na vida das cidades. E os sabores também variam conforme os locais: é diferente um café turco, tomado, sei lá, na Bósnia Herzgovina, de uma enorme caneca de café de saco em Boston, nos Estados Unidos

Além de tudo, os cafés foram espaços pioneiros das indústrias culturais. A primeira audição de rádio ocorreu num café do bairro onde moramos, no tempo em que o aparelho era muito caro. E com a televisão aconteceu o mesmo. Lembro-me até de um café que tinha duas televisões nas costas uma da outra. Ainda era o tempo de um só canal, o da RTP. Mas isso satisfazia os clientes de um lado e do outro do café. E, para quem não gostasse de ver televisão, subia-se ao andar de cima e jogavam-se bilhar, damas, xadrez e dominó. Depois, o televisor veio para a sala de estar e, agora, está presente em todas as dependências da casa.

À hora a que esta crónica for para o ar, os cafés estarão a viver uma nova efervescência, com a instalação de plasmas e telões, os ecrãs pós-modernos para ver o mundial de futebol. As lojas anunciam a aquisição desses ecrãs largos e de cores vivas a preços convidativos. Até se pode comprar a prestações!

[texto da crónica que passará hoje por volta das 10:00, na Antena Miróbriga Rádio ou 102,7 MHz (região de Santiago de Cacém)]

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