Faz hoje uma semana que o jornal inglês Guardian publicava na primeira página a fotografia de uma mulher e uma criança recém-nascida mortas num bombardeamento em Beirute. Clancy Chassay procurou saber quem seriam aquela mãe e aquela menina (a jornalista descobriu que, no mesmo incidente, faleceria o resto da família nuclear, o marido e dois outros filhos).
A história veio na edição de anteontem do jornal. A jornalista procurou no sábado passado saber informações da mulher e da criança, indo aos subúrbios de Beirute, a um sítio chamado Shiyyah, para reconstruir os passos da família vitimada, passando pelo hospital Mount Lebanon. O local da destruição era um bloco de apartamentos de cinco andares, deitado abaixo por dois mísseis israelitas. A mulher morta chamava-se Selwa Wehbe, tinha 28 anos, o marido chamava-se Ali, e os filhos eram Hassan, de nove anos, Hussein, de sete anos, e Waad, de apenas 13 dias (a criança que estava junto à mãe na fotografia). Selwa nascera ao norte do rio Litani, a fronteira natural reclamada para segurança dos israelitas.
Segundo os relatos da família sobrevivente (tios, cunhados), Selwa era uma mulher simpática e cheia de humor, que adorava nadar e ver as telenovelas árabes. O marido Ali era taxista. Quando os bombardeamentos começaram, Selwa estava muito grávida (a criança nasceu na segunda semana da guerra); além disso, estavam à espera de se mudar para uma casa nova. Daí o terem adiado a saída do bairro onde moravam, e que foi muito fustigado pela aviação israelita. A menina recém-nascida fora chamada Waad, que significa "promessa" (a partir do nome "promessa da verdade" dado pelo Hezobollah a uma operação militar) [muitas raparigas nascidas nesta ocasião estão a receber esse nome, enquanto os rapazes são chamados Hassan, primeiro nome do principal responsável do movimento libanês].
A peça que agora segui representa um trabalho de investigação. A partir de uma fotografia - um indício - a jornalista parte para o terreno e procura saber mais além do observado. No caso presente, não teve possibilidades de falar com os agentes fotografados, mas procurou em vários sítios, reconheceu o edifício, investigou familiares próximos, foi até junto deles. E, para além da história que acima sintetizo, descreve o ambiente, os familiares das vítimas, o chá que bebeu, uma criança que brincava e se juntou ao grupo. Tudo numa atmosfera calma mas de evidente revolta e tristeza.
Um trabalho deste tipo - a que se pode chamar feature, em inglês - representa um passo além da notícia factual, da ocorrência. A fotografia fora a ocorrência brutal da morte de mãe e filha. A notícia soft (que, por vezes, traduzo por notícia de investigação) revela aquilo que a fotografia era incapaz de dar. Para além do acontecimento, há razões, há pessoas e gestos. O trabalho jornalístico parece reordenar essa desarrumação do acontecimento e dar-lhe enquadramento e racionalidade. Ou, pelo menos, compreensão para quem lê. Por isso, o trabalho jornalístico é frequentemente um relato literário, com narrativa. Não é ficção mas reconstrução. Apesar de não voltar a dar vida a Selwa e Waad, quem leu teve compaixão e compreendeu, uma vez mais, que as guerras não têm sentido e que atingem aqueles que têm sonhos e fazem uma vida normal: cuidar dos filhos, procurar uma casa nova, trabalhar no taxi. As notícias hard (que falam de política, de economia, das coisas importantes da sociedade) não têm esta aproximação à vida das pessoas.
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