Textos de Rogério Santos, com reflexões e atualidade sobre indústrias culturais (imprensa, rádio, televisão, internet, cinema, videojogos, música, livros, centros comerciais) e criativas (museus, exposições, teatro, espetáculos). Na blogosfera desde 2002.
segunda-feira, 7 de maio de 2007
JORNALISMO LITERÁRIO
[Para o Nuno Seabra Lopes, do blogue Extratexto. Esta não é, certamente, a resposta que ele pretendia, mas ficam aqui algumas reflexões mais ou menos alinhavadas, sujeitas a toda a crítica e críticos]
O caderno "Mil Folhas", do Público, desapareceu com a última e grande remodelação do jornal. Era um seu caderno emblemático, editado aos sábados. A sua fortuna foi muita, pois, sob o mesmo nome, o jornal fez sair uma colecção, creio que com 100 livros, de autores consagrados e textos de qualidade.
Foi, se quisermos, o último caderno literário a sair com um jornal diário. O seu desaparecimento - apesar do substituto "Ípsilon" ser igualmente um bom caderno - marca, possivelmente, o fim da narrativa literária nos jornais impressos. O prazer da reflexão crítica da leitura está a migrar para os novos media (vivam os blogues literários, reclamou o mesmo Nuno Seabra Lopes aqui).
Que balanço (provisório) de mais de um século de literatura nos jornais? [uso aqui como sinónimos jornalismo literário e literatura nos jornais, embora sejam conceitos diferentes] Podemos dizer que o jornalismo literário é uma marca do jornalismo continental. Zola em França, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão em Portugal, foram escritores que deram prestimosa colaboração aos jornais. Ainda hoje, a tradição literária faz com que escritores sobrevivam na profissão de jornalista. A narrativa, a história, a ficção, a trama, o envolvimento psicológico e a descrição sociológica eram burilados pelo jornalista-escritor.
Isto ao contrário do jornalismo inglês ou americano, onde cedo emerge a figura de repórter, aquele que descreve friamente o acontecimento no próprio local e usava as palavras que ouve dos seus intervenientes. Um jornalista do começo do século XX dizia que os seus colegas anglo-americanos pensavam com os pés, dado calcorrearem muitos quilómetros em busca da notícia. A escrita jornalística é rápida. O seu ritmo é o do esboço (o esquisso, tirado do francês). Os diálogos são secos, curtos, às vezes carregados de pontuação.
Para além da veia de narrador e contador de histórias, o jornalismo literário tinha outras personalidades, como o filósofo. Ainda a tradição jornalística europeia continental: os editoriais, as crónicas, as colunas de intelectuais eram produto de longas elaborações, efabulações, críticas, até polémicas. Um bom jornal era aquele que alimentava a discussão, a querela.
João Gaspar Simões combinaria essa arte de crítico e filósofo, deixando marcas nas páginas literárias do seu jornal de sempre, o Diário de Notícias. Eram páginas de erudição, de confluência de saberes, de ensaio para produções mais laboriosas, de experiências estéticas. As páginas literárias competiam com as revistas. Apesar da sua efemeridade, o impacto era considerável junto do elevado público que as lia.
As elites culturais formavam-se e desenvolviam-se através de uma identificação com os jornais que liam. José Augusto França e os seus textos assinalaram rupturas estéticas nas artes visuais, nomeadamente. O Primeiro de Janeiro, no Porto e nos anos 1950 e 1960, foi um jornal que deixou uma marca literária, sendo ao mesmo tempo um jornal de informação diária. A "Mosca", do Diário de Lisboa, deu a conhecer novos valores numa altura em que o Estado Novo definhava. Ou seja, o simples artigo e a página literária eram formas de revelar e albergar movimentos.
Assim, a cultura literária, para além dos livros, das revistas de especialidade e das conferências, singrava nos jornais. De folhetim de finais do século XIX, ocupando o rodapé da primeira ou da segunda página, ao artigo crítico de meados do século XX, há uma evolução. Além do refinamento da linguagem, sobressai um alargamento de dimensão e a abertura para novos géneros: editorial, coluna, carta. A cultura, a arte e a crítica às obras assim o exigiam.
A cultura assente na leitura começaria a perder relevo com a massificação da cultura visual - o cinema, a televisão, o vídeo, a internet. Da construção da ideia, elaborada lentamente, passa-se à visualização, ao conhecimento brutal da realidade instantânea e não mediada por códigos de interpretação e descodificação. Daí o crédito à noção de uma imagem valer mais do que mil palavras. À experiência da imagem alia-se a movimentação do indivíduo pelo transporte mecânico que o leva de sítio para sítio (deambulação pelo espaço), mais um elemento a perturbar o peso da leitura e, logo, do jornalismo literário. A própria literatura deixa-se seduzir pela narrativa pictórica - o filme, a telenovela, o videojogo.
O desaparecimento do "Mil Folhas", do Público, é o registo da mudança de paradigma comunicacional. O jornal Público tornou-se mais visual, as imagens ocupam o espaço das páginas centrais. A informação quer-se mais curta e incisiva.
Mas, curiosamente, enfatizam-se as soft news - as notícias com interesse humano. Um acontecimento é visto através de uma história, uma narrativa. O jornalismo literário desaparece, no seu território e fronteiras, mas reaparece dentro da notícia, com tensão, movimento, ritmo, harmonia, encadeamento.
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