sábado, 19 de maio de 2007

NATUREZA MORTA, UM FILME DE JIA ZHANG-KE


A barragem das Três Gargantas, que deverá controlar as enchentes do rio chinês Yangtsem, e que tem conclusão prevista para 2009, é o cenário natural de Still life - Natureza morta (2006), filme de Jia Zhang-ke (nascido em 1970 e pertencendo à chamada 6ª geração), que já realizara filmes importantes como Pickpocket (1997) e O mundo (2004), que eu apreciei muito. No período inicial da carreira, as autoridades chinesas não tinham aprovado os temas dos seus filmes.

Em Still life - Natureza morta, o realizador conta a história da lenta submersão da velha cidade de Fengjie pelas águas da barragem. O mineiro Han Saming viaja de Shaanxi para Fengjie, onde procura a mulher que o abandonara 16 anos atrás e, especialmente, a filha de ambos. Outra história cruza-se no filme: uma enfermeira procura o marido, que ficara a trabalhar nas obras associadas à barragem e enriquecera. Se, no primeiro caso, o mineiro reata relações com a mulher, no segundo caso, o casamento acaba em divórcio.

Os filmes de Jia Zhang-ke falam do confronto de valores materiais e colectivos da China moderna face ao país de poder maoista. Dois mundos em choque, com o desaparecimento rápido do antigo, embora os indivíduos mantenham referências dele. Um sinal de modernidade, que atravessa os filmes do realizador chinês, é o telemóvel, patente em O mundo e em Natureza morta.


Enquanto naquele, se observa o mundo moderno no centro da história (um parque temático em Beijing, jovens em empregos precários, a sedução da ocidentalização, ecos laterais do mundo antigo), no filme agora presente nas salas de cinema o mundo moderno (a barragem) esmaga no próprio local o mundo de tradições (a cidade milenar, as relações sociais de vizinhança que morrem, a luta dos indivíduos contra um partido político que não é mais do que um emaranhado de contradições burocráticas, os novos valores como os cabelos pintados de um rapaz que usa a mota como meio de transporte de clientes, como se fosse um táxi mais leve).

Se em O mundo, há a presença de uma classe média baixa (de serviços), em Pickpocket o jovem ladrão retrata um proletariado que perdeu as referências e cresce na pequena criminalidade como pano de fundo de um mundo em rápida erosão. Já Natureza morta explora as relações entre a nova classe média baixa (o construtor civil cuja mulher, enfermeira, procura o divórcio) e os trabalhadores braçais (o mineiro, os trabalhadores que participam nas obras de destruição dos prédios de Fengjie).

O olhar para a China e as suas transformações é dado sempre por essas personagens do fundo da tabela social, revelando (real ou implicitamente) a gigantesca marcha de mão de obra dos locais do interior do país (zonas pobres ou esquecidas do poder central) para as cidades (onde, supostamente, há riqueza e sua distribuição mais equilibrada) e que Pickpocket se encarrega de anunciar ser uma ilusão não factível. As personagens não evidenciam sinais de ressentimento (para usar a palavra da minha mensagem de ontem), encaram a vida não direi com resignação mas como se elas estivessem nos parâmetros da existência social desde sempre. Isto é, não há revolta ou ela está muito controlada. O partido (comunista) parece estar por detrás deste alheamento social.


Ou a revolta está bem controlada e restringe-se à discussão de velhos familiares, como quando o mineiro fala com o antigo cunhado. Aí evidenciam-se as mudanças sociais, culturais, económicas e políticas da China - nas relações dentro da família e nos grupos sociais. Essas relações são frágeis: voltamos à história do mineiro - a filha que este pretende rever não está na cidade onde a mãe vive mas procurou estabilidade de emprego numa cidade mais a sul, o marido da enfermeira mostra o seu status através do automóvel que conduz. Mas ainda se observa solidariedade - quando um grupo decide espancar um jovem que fizera mal a um elemento daquele grupo; o brinde com licor quando o mineiro abandona o grupo de trabalhadores da construção civil.

Um outro sinal que este filme me chamou a atenção é o da identificação dos lugares. Há lugares mais importantes que outros. No dinheiro em papel há representações de algumas cidades. Os operários, nas suas narrativas, valorizam tais representações como se fossem fotografias ou vídeos de um lugar. Possivelmente, e para aquelas camadas sociais, não há abundância de livros ou de imagens fixas. O signo estampado na nota adquire a mesma configuração como quando nós quando interpretamos o mapa das linhas de metro numa cidade que visitamos pela primeira vez. O referente torna-se realidade, o significante traduz o sinal real.

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