Textos de Rogério Santos, com reflexões e atualidade sobre indústrias culturais (imprensa, rádio, televisão, internet, cinema, videojogos, música, livros, centros comerciais) e criativas (museus, exposições, teatro, espetáculos). Na blogosfera desde 2002.
sábado, 2 de junho de 2007
A MINHA HOMENAGEM A MARY DOUGLAS
Antropólogos como Mary Douglas estudaram e examinaram a influência dos factores políticos, culturais e sociais na percepção do risco. O risco age na sociedade e cria ameaças à ordem social, mas também à ordem do corpo – se a sociedade está em perigo, também está o corpo. Com base nesse princípio, Douglas (1966/1991) discute os modos simbólicos e rituais em que se classifica o mundo. O corpo humano é conceptualizado como possuído por fronteiras para fora e para dentro, as aberturas do corpo; também a sociedade tem uma forma, com fronteiras externas, margens e estrutura interna. "Sujo" e "poluído" são coisas fora do sítio, que transcendem as fronteiras e as classificações aceites socialmente no corpo e no mundo. A teoria sobre pureza, poluição e perigo acaba, assim, por apoiar o peso do risco na sociedade ocidental contemporânea, particularmente o uso do risco como conceito de culpa e marginalização do "outro".
Manter a estabilidade significa controlar a desordem, a contaminação e a poluição. O controlo corporal é, em Douglas, o equivalente a controlo social. Como corolário do argumento, se se relaxam os controlos sociais sobre as margens, também se distendem os controlos sobre as aberturas do corpo individual. As noções contemporâneas de impureza e limpeza não são o efeito do interesse sobre os microrganismos mas de interesses simbólicos. Para Douglas (1966/1991: 14): "Tal como a conhecemos, a impureza é essencialmente desordem. A impureza absoluta só existe aos olhos do observador. [...] As ideias que temos da doença também não dão conta da variedade das nossas reacções de purificação ou de evitamento da impureza. A impureza é uma ofensa contra a ordem".
Numa retoma da ideia do indivíduo que assume o risco, Mary Douglas, em Risk and blame (1992), trabalha a teoria do contágio face à sida. Na sociedade contemporânea, o risco substituiu as antigas ideias sobre a desgraça, caso do pecado. A diferença entre perigo no contexto do tabu e risco como tema central do perigo contemporâneo é que o tabu reside na retórica da retribuição e acusação contra um indivíduo específico e o risco é invocado para proteger os indivíduos contra os outros (Douglas, 1992: 27-28). Reforçam-se as ideias de corpo e infecção face à invasão da sida. Se, na sida, o vírus invade o corpo, descreve-se a doença como invasora da sociedade inteira. Contínuo assalto viral, com contaminação e vulnerabilidade, a sida torna o corpo do indivíduo ou a sociedade incapazes de reagir.
O que está inserido acima foi escrito, aproveitando os trabalhos de Mary Douglas, na minha tese de doutoramento intitulada Jornalistas e fontes de informação – as notícias de VIH-sida como estudo de caso e apresentada na Universidade Nova de Lisboa. Foi uma grande alegria tê-la lido e estudado [imagem retirada do obituário publicado no Times, em 18 de Maio último].
Li, no Expresso de hoje (texto de José Cutileiro), a notícia da sua morte, ocorrida a 16 do mês passado. Nascida em 1927, ela formou-se em filosofia, política e economia em Oxford. Foi um marco na antropologia social da segunda metade do século passado, iniciada por Evans-Pritchard. Inicialmente africanista (fez trabalho de campo entre o povo Lele, do antigo Congo Belga), ela investigou a sociedade ocidental e trabalhou temas como alimentação e consumo, risco e ambiente. Católica, também dedicou muito interesse ao estudo do Antigo Testamento.
Bibliografia lida:
Douglas, Mary (1966/1991). Pureza e perigo. Lisboa: Edições 70
Douglas, Mary (1992). Risk and blame. Essays in cultural theory. Londres e Nova Iorque: Routledge
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