quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Umberto Eco - ou um intervalo entre as notas para uma aula de Teorias da Comunicação



Volto a escrever sobre A misteriosa chama da rainha Loana, de Umberto Eco - ver, por exemplo, em 22 de Abril de 2005 ou o meu livro Indústrias Culturais -, agora com outras perspectivas. Defendo que o livro - para além da inegável reconstituição histórica da época de vida de Eco, tornado Giambattista Bodoni, aliás Yambo - representa uma via importante para a compreensão do hipertexto e interpretação. O livro é, sobretudo, sobre a perda da memória biográfica da principal personagem, vítima de um AVC - mas onde se realçam essas duas categorias.

A aula de hoje serviu para reorganizar o que se sabe sobre o autor e a obra. A interpretação que fizemos (ou a sua reinterpretação) surge também como um reconhecimento ou uma reaprendizagem do mundo exterior e das relações que Bodoni aliás Yambo mantinha: com a mulher, com os familiares, com os amigos, no seu negócio de alfarrabista muito cotado. Nós aprendemos o mundo lá fora através de três possibilidades: aprendizagem pessoal, informação veiculada por outras pessoas, media.

Bodoni aliás Yambo recomeçou a viver graças à informação veiculada pelos outros (primeira parte) e pelos media (segunda parte). Há no livro um sentido muito hegeliano das coisas, com a parte inicial a ser a redescoberta ou nevoeiro (saída da escuridão), com a segunda parte a ser do domínio da clareza (ou reconstituição do passado através das releituras de infância e adolescência e a última o regresso ao pesadelo do AVC (mas uma escuridão luminosa, se é permitido assim interpretar).


Em Eco, aprendemos o que é a falsificação literária (a partir de materiais reais forma-se uma trama ficcional). Ou, de outro ângulo, ele usa os materiais como um romancista histórico, misturando habilmente situações verdadeiras (ou conjuntos de ordem social) e personagens fictícias, dando à sua literatura a curiosidade e suspense do romance policial. Diria mais apropriadamente que ele junta a semiótica (a sua verdadeira profissão) com a ficção (o seu ganha pão mais evidente). E, embora recorra a exemplos históricos, a sua semiótica é uma cultura a-histórica. Essa semiótica é visível logo na primeira parte quando usa oposições como nevoeiro e chama (há uma misteriosa chama, lê-se na página 69: "o que significa uma «misteriosa chama»?". "Não sei, mas saiu-me". E há a curiosidade em saber o que é a misteriosa chama e a rainha Loana (aí os alunos disseram: professor, não conte a história do livro pois ainda não acabamos a sua leitura).

Ora, onde Eco é forte - pelo menos na primeira parte do livro, que foi o que estudámos - é no domínio do hipertexto. Eu encontro pontos fortes nele, tais como maleabilidade e capacidade de procurar (mas ressalto um ponto fraco, o esquecimento, a procura aleatória nos sítios da Internet que nos leva longe do tema inicial). E o hipertexto salta de Eco para os seus fãs, como o ilustra o sítio, queenloana, projecto iniciado por Erik Ketzan em torno da obra de Umberto Eco, e que dá muitas pistas, nomeadamente para a compreensão das suas múltiplas referências literárias.


Mas igualmente descubro o texto
Edgar Roberto Kirchof e Isabella Vieira de Bem, dedicado à hipertextualidade e efeito multimedia no livro impresso e, em particular, neste livro. Nele pode ler-se nomeadamente:

"Uma das principais características do hipertexto é a ruptura quanto à forma linear da leitura, devido ao seu caráter eminentemente não-sequencial. Nesse sentido, como afirma o próprio Eco, mesmo antes da tecnologia digital, nós já temos lido livros de forma hipertextual: “Nós lemos uma página e pulamos, principalmente quando a estamos relendo. Pense na Bíblia. Quando as pessoas a lêem, elas sempre estão pulando aqui e ali, constantemente ligando várias citações.

"[...]Os romances de Umberto Eco, nesse sentido, são exemplares, pois constituem verdadeiras redes dotadas de uma gama impressionante de referências a obras provindas dos contextos mais variados. Embora essa estratégia também esteja presente em O nome da rosa, O pêndulo de Foucault, A ilha do dia anterior e Baudolino, a seguir, será abordada, ainda que em breves traços, a partir do romance A misteriosa chama da rainha Loana. Como notou Caesar (1999), a leitura bem sucedida de um romance de Umberto Eco pressuporia um leitor dotado de um conhecimento enciclopédico tão vasto como o do próprio autor. As referências intertextuais, na obra de Eco, são tantas que foi criada, por um de seus tradutores, Erik Ketzan, uma página na internet, com tecnologia Wiki, na qual os internautas são convidados a explicar as inúmeras passagens que se reportam, implícita ou explicitamente, a obras das mais variadas procedências".

Para outra ocasião, se houver, fica a promessa de explorar uma também importante característica deste livro - a análise dos meios de massa (media) - tarefa ingente que Umberto Eco começou desde que passou pela RAI (televisão pública italiana) e pelo livro Apocalípticos e Integrados, por exemplo.

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