domingo, 20 de abril de 2008

O RAPAZ DO ACORDEÃO


Vi-o tocar de um modo invulgar, experimental, arrancando sonoridades que jamais ouvira.

Estou a falar de Will Holhouser e o seu trio (composto ainda por Ron Horton, no trompete, e David Philips, no contrabaixo), acompanhado por "a very special guest" Bernardo Sassetti, com este a suscitar aplausos, gritos e assobios dos fãs mais fortes do pianista (parece-me que a fatia da audiência feminina vibrou mais, naturalmente). Pequenas peças, de improviso, de ritmos melódicos ora compreensíveis ora de grande experimentalidade, encheram o grande auditório do CCB nos Dias da Música.

A minha memória do acordeão levava-me a considerá-lo uma antiga tecnologia já completamente em desuso. Como outras tecnologias, como a que serviu de encontro de velhos colegas ontem, que recordaram uma situação profissional desaparecida mas onde persiste uma relação pessoal para além da morte da tecnologia. É a história viva, como alguém disse. A esmagadora desses indivíduos já não está profissionalmente activo. Não escrevem as suas memórias, vivem de coisas antigas, repetem os mesmos tiques ou referem a tecnologia como interessante, têm um conhecimento ténue das novas tecnologias e da gestão a elas associada. As tecnologias digitais arrumaram para o canto do museu as anteriores da geração electromecânica (como ocorrera na televisão com o sistema electrónico a eliminar a tecnologia mecânica de Baird). Posso estimar em dez anos a completa subsituição tecnológica, que aconteceu de igual modo em todo o mundo ocidental. Portugal terá sido até local de experiências de tecnologias digitais (alemã e americana), pois um pequeno mercado permite efectuar adaptações e resolver problemas que seriam mais sensíveis num país de maior dimensão.

Um dia, o conhecimento daquela tecnologia vai desaparecer. Pena que não fique registada como a dos músicos do CCB e o espaço museológico é escasso e mal tratado e compreendido.

Aqui, cabe espaço a uma reflexão: os músicos, como outros artistas, empregam materiais e equipamentos insensíveis à novidade ou não das tecnologias. A criação e a inventividade são variáveis independentes dos suportes, pois estes permitem experimentalidades nunca antes tentadas, como o caso do acordeão de Holhouser.



O dia para recordar a memória da tecnologia também não estava agradável. Chovia torrencialmente. A cidade apareceu ainda mais deprimida do que está - os edifícios velhos estão abandonados, os empregos de outrora desapareceram e tornaram a área mais vazia e inóspita. Até chovia no interior do hotel, espaço que tinha um grande glamour quando eu era adolescente (falava-se em festas e de clientes importantes). Os sítios também se ressentem da decadência humana.



[imagens do Porto, baixa da cidade]

4 comentários:

Anónimo disse...

"O RAPAZ DO ACORDEÃO"

Chego, abro o correio. Nao resisto, e continuo e viajar por aqui. Agrada-me sentir-me levada do CCB ao Porto, da notícia ao interior do texto, onde o blogueiro se dá aos que procuram a sua companhia. A chuva, a cidade, a memoria: dia nostálgico. Encosto-me ao texto, à ilusão de que ele fala para mim. Mas não é isso que todos procuramos, que os nossos leitores nos sintam, se sintam únicos?
mgf

Anónimo disse...

As cores das palavras

Leio as cores, as imagens
viajo no texto.
O dia de chuva
abre um arco-iris
pousado no meio do corredor:
laranja, amarelo, azul, verde, violeta, anil...
Acrescento o as que faltam
ao gesto.

mgf

Anónimo disse...

"imagens do Porto, baixa da cidade"

As casas as portas nas ruas desertas.
Por tràs da janela a mulher invisivel
levanta a cortina
vê o homem
sorri à máquina.
A mulher quer ficar na fotografia
improvável.
"Os sítios também se (res)sentem da (de)cadência humana."
mgf

Anónimo disse...

"O RAPAZ DO ACORDEÃO"- 3

"Os sítios também se ressentem da decadência humana." :

Ouço as palavras
ciciadas
sopros de « sítios » à escuta «(de)
cadência humana ».
mgf