Textos de Rogério Santos, com reflexões e atualidade sobre indústrias culturais (imprensa, rádio, televisão, internet, cinema, videojogos, música, livros, centros comerciais) e criativas (museus, exposições, teatro, espetáculos). Na blogosfera desde 2002.
domingo, 22 de junho de 2008
ALEXANDRA, FILME DE ALEXANDER SOKUROV
O helicóptero sobrevoa o quartel, arrastando uma nuvem de pó, enquanto Alexandra Nikolaevna (interpretada por Galina Vishnevskaya) é levada ao colo pelo neto Denis (interpretado por Vasily Shevtsov), depois de ter estado dentro de um tanque de guerra (ver extracto do filme aqui, com tradução em francês, e aqui, sem tradução).
Noutro plano, Alexandra fala com o capitão da unidade. Enquanto conversam, o som de helicópteros é bem evidente. "Aqui, é quase a guerra", diz o militar à velha avó. E esta responde: "Vocês sabem destruir. Mas quando aprenderão a construir"? A avó, que gostaria de arranjar uma esposa para o neto, conclui que este nada mais sabe do que atirar (armas). Quando o comandante quer saber mais do que pretende Alexandra, esta pede para regressar ao "hotel", o espaço da tenda de lona onde está a sua cama enquanto visitante da unidade. O diálogo já não tinha mais para dar.
Stavropol foi o local de onde veio Alexandra visitar o neto. Di-lo quando no mercado toma contacto com as mulheres que ali vendem. Só se vêem mulheres velhas e dois adolescentes masculinos. Os homens desapareceram. Percebe-se pelo que diz Marlika, a interlocutora de Alexandra, em voz baixa quase de confidência: os irmãos morreram, as irmãs morreram, a irmã mais nova fugiu com o filho para a montanha. Em fundo dessa conversa, ouvem-se vozes masculinas: a dos militares ocupantes.
Nessa visita de alguns dias, Alexandra descobre um mundo novo, de temperaturas elevadas, de desconforto, de conflito latente. A paisagem humana é sempre inóspita: os soldados são transportados num comboio de mercadorias, as armas têm de ser limpas periodicamente para não encravarem, os soldados dormem em tendas velhas ou andam pelo acampamento como se fossem zombies, a limpeza é escassa, no mercado vendem-se poucas coisas, as casas da cidade estão todas esburacadas por bombardeamentos.
Alexandra Nikolaevna penetra num mundo masculino, o da guerra, universo fechado de luta e ideia vaga de pátria face a inimigos que nunca querem compreender. Mas, lentamente, desloca-se para outro universo, o das mulheres, que percebem quais os principais valores da vida: o amor, o trabalho, o sacrifício, a colaboração. O chá que Marlika dá a Alexandra Nikolaevna, embora mau, alimenta as confidências, a percepção do mundo. Por elas, a guerra acabaria - por estúpida que é. Por seu lado, Alexandra e Denis reencontram a cumplicidade antiga, quando ele diz que prefere não casar por não ter muitas poupanças e penteia e faz a trança à avó.
A guerra sabemo-la qual é, mas a palavra Chechénia nunca é pronunciada. Parece um tabu, que os russos não querem pronunciar, como se temessem pelas próprias palavras.
Actualização: a actriz Galina Vishnevskaya é soprano (há no YouTube vários vídeos com interpretações suas) e viúva de Mstislav Rostropovich, maestro falecido o ano passado (obrigado Carlos, pela dica).
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