domingo, 7 de setembro de 2008

CEREJAS DE CELULÓIDE


Cerejas de Celulóide é um livro de Zilda Cardoso, de quem já aqui comentei A Rua do Paraíso.

A narrativa centra-se em torno de dois irmãos, Joana e André, que querem vender dois prédios herança de família. No começo de cada capítulo, é-nos dada informação do andamento dessa venda, de difícil solução, através de uma agência de propriedades. Depois, ao longo dos capítulos, as personagens, mais Joana que André, falam de assuntos pessoais e sociais. Com a autora a entrar frequentemente na discussão, por intermédio de um "eu" interventivo e opinativo. Os temas incluem a política (Joana parece-me de centro-esquerda, André de centro-direita), a segurança social e as pensões, pintura, valores morais, gordura, morte, arte naïf, futebol, media e ética jornalística (e Associação Portuguesa de Consumidores dos Media), escola e cultura, sexo, cristianismo e budismo, depressão e comprimidos, praxes e espanhóis, televisão e concursos, arrumadores de carros, eleições, computadores. É um texto como se fosse um longo diálogo sobre filosofia, estética, filosofia e correntes da arte, discussões do dia-a-dia comentando os acontecimentos mais recentes, numa deambulação fragmentária, recordando a linguística e a semiótica de Charles Sanders Peirce, para quem um significado desperta sempre novos interpretantes, numa semiose ilimitada.

Cerejas de Celulóide - cujo título é retirado de uma capeline que Joana tinha quando criança (p. 187) - centra a sua acção no Porto, cidade onde vive a autora. Se em A Rua do Paraíso era perceptível o núcleo urbano trabalhado pelo livro, neste há um alargamento geográfico. Assim, detecto três subnúcleos urbanos: 1) em torno de uma imaginária Rua das Delícias (tanto quanto julgo), mas perto da Rua do Paraíso, Praça Marquês de Pombal, Rua Antero de Quental, Lapa, Praça da República, 2) em torno da "baixa" da cidade, mas partindo do espaço contíguo ao primeiro núcleo, como Rua Mártires da Liberdade, Praça Carlos Alberto, Praça dos Leões, Cordoaria, Praça da Liberdade, Avenida dos Aliados, estação de S. Bento, Rua Santa Catarina, Rua 31 de Janeiro, Praça da Batalha, Clérigos, Praça D. João I, Rua de Passos Manuel, Rua Formosa, Rua das Taipas, 3) junto do Oceano Atlântico, numa zona chamada indevidamente (em parte) como Foz (do Douro), como Castelo do Queijo, Praia do Molhe, Avenida do Brasil, Rua do Passeio Alegre. O núcleo 1 é o da infância, das casas para venda, e que retoma de certo modo A Rua do Paraíso, o 2 alberga as lojas antigas, onde a pequena e média burguesia fazia compras até aos anos 1970, o 3 abrange o espaço habitacional mais rico da cidade. Lojas como Casa Cristina, Ourivesaria Baptista, Farmácio Estácio, Brasileira, Casa Africana, Casa Hortícola, Pérola do Bolhão, Camisaria Rosas, Foto Beleza, Café Guarany e Café Palladium fazem parte desse imaginário. Referências às indústrias culturais perpassam aqui e acolá, como os jornais O Primeiro de Janeiro e o Jornal de Notícias, uma rádio local e a televisão, mas sem impacto no texto.
Por vezes, a autora refere a pequena dimensão da cidade, mas, curiosamente, uma parte da cidade, a oriental (Antas, Bonfim), nunca é mencionada.

Salas de espectáculos e espaços culturais, como Coliseu, Sá da Bandeira e Rivoli são a representação simbólica e cultural da cidade antiga, enquanto Serralves representa a modernidade. A autora refere autores ou artistas como Paula Rego, Paul Klee, Pedro Burmester, Vasco de Lima Couto, Agustina Bessa Luís (p. 179), António Nobre, Manoel de Oliveira, Graça Morais, Siza Vieira, Sophia de Mello Breyner, a maioria com ligações ao Porto, no que será certamente o levantamento cultural e antropológico da cidade moderna segundo Zilda Cardoso. Cita outros autores como Edgar Morin e José Gil.

Há um contínuo vaivém no tempo (sessenta anos de intervalo, maior que o período 1935-1950 analisado no outro livro de Zilda Cardoso de que fiz destaque) e no espaço, em que a história dos irmãos vai transparecendo lentamente, mais as suas origens familiares, a escola, a mãe que faleceu jovem e a madrasta, os gostos, a cultura. Em que se colam três épocas políticas: o regime conservador em que as personagens viveram a infância e a adolescência (e enquanto jovens adultos, concluo); a transição democrática aquando da idade madura; o governo de aparência livre mas sem capacidade de opção (p. 69). Só na parte final da história é possível reconstituir a genealogia da família: Afonso (pai) e Piedade (madrasta), Joana (casada com Amadeu) e André (casado com Noémia). Dos irmãos, entende-se que estão reformados, de Amadeu tem-se a ideia de empresário, de Piedade conhece-se o hóbi da pintura.

Se A Rua do Paraíso é inequivocamente uma memória antropológica, Cerejas de Celulóide é uma aventura mais madura no domínio da narrativa romanceada (edição da Campo das Letras, de finais de 2007). Tenho algum pudor em chamar-lhe romance pois, apesar das personagens, prepondera o diálogo acerca da vida e dos problemas, como escrevi acima, entre dois irmãos, como se fosse um reencontro motivado por uma questão específica e ponto de partida sobre uma reflexão de costumes. A riqueza maior do texto é a sua possibilidade de ser lido no futuro como a percepção de como uma cidade, a sua população, pensou sobre um tempo. Talvez isso justifique as duas frases seguintes: "Lisboa tem sempre que ganhar, não sabes?" (p. 131), "Dos portugueses, os portuenses não esperam nada" (p. 327). O olhar de dentro para fora da cidade revela algum mal-estar face a um presente, perdida que foi uma geografia de lojas e ruas em detrimento de outras, em que o texto é omisso. Mas que sabemos estar a extravasar os limites da cidade e passar para os concelhos vizinhos.


Tal olhar resulta ainda numa perspectiva política direi amarga, sem esperanças. Para mim, isso explica o recurso à explosão final dos prédios para venda: nem os proprietários usufruiram do bem, nem igualmente os inquilinos, que não ficaram no final para comentar o sucedido. Como se fosse uma parábola extensível ao país: só dinamitado é que ele pode(rá) mudar e melhorar.

2 comentários:

Unknown disse...

Cerejas... para mais tarde recordar!

Cerejas de celuloide

à maneira daquelas capsulas que se deitam ao mar, enterram nas profundidades da Terra, levam para outros planetas, para um dia poderem servir a hipoteticos seres como nos. Mas hoje, o que fazemos com cerejas destas? Nada. Reconhecemo-nos nas representaçoes? é pouco. Eu so como cerejas verdadeiras, ou representadas em produtos naturais: madeira, barro, pedra, palha, areia... De celuloide, nao. Que nao gosto de representaçoes, criaçoes, ficçoes, e por ai adiante? Nao, nao é verdade. Gosto muito. Mas, como hei-de dizer... fazer-me entender... Exijo que perdure nelas um gostinho daquele que as "pinta". Como as de Graça Morais, dedicadas ao Herminio, como as do quadro que tenho na minha sala de jantar, autor anonimo, mais vermelhinhas que as verdadeiras. é isso mesmo! Encontrei! A literatura tem de acrescentar o real... e as da Zilda Cardoso sao cerejas so para mais tarde recordar!
mdg

Unknown disse...

Nao é minha (a cerejeira) mas destas cerejas eu gosto...

Conhece este jardim?

Uma cerejeira no jardim


"...Como comunicar a diferença subtil entre consumo cultural e vida cultural? De que modo a pobreza afecta a criação artística? De que modo a web alterou a instrumentalização dos poderes culturais? De que modo a hostilidade crescente entre o mundo cristão e o islâmico provoca uma reacção de mesmização cultural no Ocidente? De que modo a cultura científica tem contribuído para a paz mundial? E se não tem, será credível que venha a ter? De que modo o ensino da argumentação, que é um objectivo da escola, contribui para a formação de públicos e evita a manipulação pelos media? Que novo tipo de circuitos e de equipamentos é necessário descobrir para satisfazer as novas necessidades de distribuição da actividade artística? Contribuiu a arte contemporânea para o conhecimento do humano?
Seria desejável encontrar respostas antes que as cerejeiras floresçam outra vez… "