[continuação da mensagem de anteontem]
Embora presente nas linhas anteriores, quero alargar o meu pensamento. Trata-se de um exercício teórico a necessitar de trabalho empírico: qual o peso do poder das tecnologias sobre as profissões do jornalismo? Há rupturas ou adaptações? As rupturas decorrem de um só facto, de uma só tecnologia? Ou de uma conjugação no tempo e no espaço? Há uma ruptura em si, ou deslocações que combinam tradição e ruptura?
Não pretendo desenvolver Thomas Khun e seguidores, mas encontro uma explicação simples através da pintura: exemplos de Picasso (com os períodos azul e rosa, de grande realismo pictórico) ou de Van Gogh (a aprendizagem em adulto das técnicas da pintura), em que movimentos antagónicos acompanham o progresso material e intelectual dos artistas em si e no contacto com o meio ambiente. Podemos falar de etapas, de modelos, de representações.
A minha discordância é face à escola do determinismo tecnológico, cheio de optimismo e perfeição. Há um deslumbramento tecnológico, como quando adquirimos um novo gadget. O importante aqui é descobrir o discurso preponderante de uma época e enquadrá-lo numa perspectiva científica ou reflexiva. Cada período histórico produz o seu próprio quadro de representações, fazendo a revisão dos anteriores períodos.
Penso em três momentos de alterações: introdução da máquina de escrever, introdução do computador, acesso à Internet. A minha hipótese de partida é que o momento de maior ruptura é o segundo – a introdução do computador –, pois ele significou um novo mapa de rotinas e eliminou uma profissão, a dos tipógrafos. Mas foi uma ruptura silenciosa (ou silenciada) porque os historiadores e os sociólogos não se debruçaram suficientemente sobre ela.
A máquina de escrever na redacção melhorou a legibilidade dos textos por parte dos tipógrafos. A máquina substituía o texto escrito em papel, mas continuava a servir de intermediário entre duas profissões, jornalistas e tipógrafos. O tipógrafo passava para a linguagem da tipografia aquilo que o jornalista escrevia à mão ou à máquina de escrever. Quase que era indistinto o texto aparecer escrito à mão ou na máquina. O tipógrafo tinha poder. A luta no jornal República (1975) é um exemplo dessa distinção.
Nos anos seguintes, até meados da década de 1980, a entrada do computador na sala de redacção trouxe uma profunda alteração, possivelmente maior que as entradas da máquina de escrever e da Internet. O tipógrafo desapareceu, mas não conheço relatos académicos dessa transformação. Há também uma questão de classe: o tipógrafo era operário, o jornalista é o que escreve notícias e acede a fontes poderosas ou importantes. Se quisermos, deixou de haver um intermediário – ou uma espécie industrial de copista. O jornalista passou a ser o autor do texto e o escritor definitivo junto à impressão. Isto no jornal, pois os outros meios dispunham de outras tecnologias. Mas a analogia que se faz frequentemente é entre o jornalista do jornal e o da Internet.
No período entre a introdução do computador e da Internet (10 a 15 anos), houve mudanças pouco estudadas dentro e fora da redacção. Por exemplo, a entrada de sistemas de contabilidade e gestão, o arquivo de documentos pessoais, a ligação entre jornalistas e editores. A Internet trouxe pelo menos duas vias: o endereço electrónico (email) e o acesso à www (agora mais conhecida como Internet). Há já duas gerações a lidar com o computador, a dos anos 1980 e 1990 e a que entrou com a Internet e as facilidades informáticas de elaboração de vídeos, podcasting e blogues. A primeira geração, de transição, desenvolveu competências no posto de trabalho, além de tirar cursos específicos de curta duração. A segunda geração, digital, experimentou tecnologias digitais nos anos de escolaridade, entre colegas, ainda antes de entrar na redacção, incluindo jogos de computador. Estas alterações tecnológicas associam-se a outras transformações como juvenilização e feminização das redacções, criação ou ampliação de secções, temas ou problemáticas como saúde, ambiente e minorias, surgimento de novos títulos e meios: Público, Independente, SIC, TSF.
Registo ainda outras características, como o aumento de notícias mais leves (soft news) e de entretenimento e o cinismo dos jornalistas face aos poderes, com a ideia de cães de guarda ou vigilantes do poder. A par destas duas últimas características, Schudson (2003) nota uma geração de jornalistas mais bem apetrechados culturalmente. A segunda geração dos computadores apresenta maior aceitação quanto ao trabalho multimedia, nomeadamente na participação de chats e elaboração de vídeos e animação.
A transformação tecnológica traduz-se numa questão de cultura e de mentalidades, de migração cultural e tecnológica analógica para o digital. O computador associou-se à modernidade, ainda mais do que o acesso à Internet. Foi feito um prolongado discurso de literacia. A própria evolução das máquinas informáticas levaria o profissional a procurar manter uma actualização que não existia previamente e que se torna uma marca fundamental nunca sentida antes.
A geração digital, a da Internet e dos jornais electrónicos de 1995, tem-se adaptado tecnologicamente, como disse, dentro do ambiente das máquinas digitais, conquanto a transição ainda esteja em curso em várias indústrias culturais (cinema, televisão), em especial na transmissão (e não na produção e recepção ou reprodução). O dispositivo eufórico trazido pelas novas máquinas parece descobrir um homem novo, capaz de trabalhar com múltiplas tecnologias ao mesmo tempo e com iguais ganhos: usa o telemóvel, trabalha no computador, ouve música, gere uma grande abundância de recursos. Mas perde atenção e concentração, pois a imediatez e a rapidez de resposta, evidenciada nos chats como o Messenger, não permitem a reflexão. Claro que o jornalismo sempre foi uma profissão de acção, da escrita quase automática. O que evidencia uma continuidade, visível na observância das rotinas produtivas do velho e do novo jornalista são muito idênticas, mesmo no caso do gatekeeper.
As tecnologias assentes na rede electrónica de comunicações estabelecem elas próprias novos interesses, como a redacção multimedia. Aqui, detecto duas tendências, a das empresas profissionais, detentoras de licenças e prosseguindo o lucro, que articulam trabalhos nos vários media, e a dos projectos amadores, que combinam tecnologias com experimentação e inovação, que as empresas profissionais absorvem, em termos de recursos humanos e de bancos de ideias.
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