António Pinto Ribeiro lançou recentemente um novo livro. Vi-me impedido de estar presente nessa cerimónia, por afazeres profissionais, mas ontem aproveitei umas horas livres para ler atentamente, e com agrado, o volume de 75 páginas de texto intitulado À Procura da Escala. Cinco exercícios disciplinados sobre cultura contemporânea. Os cinco exercícios significam cinco temas, cinco capítulos, voltados para a cultura portuguesa, para o multiculturalismo visto dos pontos de vista do antigo país colonizador e do país africano independente e para a observação das políticas culturais. Reflectem a perspectiva do intelectual, programador e cidadão.
O primeiro exercício é uma defesa da posição da esquerda sobre a política cultural, repartida em três elementos: 1) criação de obras subsidiadas pelo Estado (cinema, teatro, dança, música), 2) democratização no acesso aos bens culturais, 3) descentralização. Conclui que deve haver um esforço para transformar o estatuto do consumidor em receptor crítico e mais esclarecido (p. 22). Por isso, o usufruto de bens culturais não é sinónimo de melhores e mais cultos cidadãos e que a leitura das obras de arte requer mecanismos de habituação e simpatias estéticas (p. 14). Quanto à descentralização, o autor tem um olhar crítico: as obras deveriam passar do interior dos países para as capitais e não ir do centro para a cidade periférica. Nesse texto, Pinto Ribeiro analisa a crise dos intermitentes em França e todo o problema dos criadores de arte, sujeitos a encomendas e a projectos. Para ele, os países europeus criaram legislação de apoio aos criadores, entretanto oportunisticamente aproveitada por empresários do audiovisual que viram na lei uma forma de escaparem a contratos de emprego permanente.
O segundo exercício reflecte o conceito de interculturalidade e a necessidade de fazer uma revisão da história colonial (em especial a África, e que também ocupa o centro do terceiro exercício). O multiculturalismo teve êxito nas últimas décadas do século XX, com a defesa de cidades multiculturais (Amsterdão, Londres, Marselha, Nova Iorque, São Paulo). Mas foi esquecida a passagem da comunidade cultural para a comunidade política, pois a interculturalidade pressupõe um projecto político de sociedade (p. 30), com perfeita definição de valores das etnias e dos grupos culturais. Pinto Ribeiro aponta duas premissas: convivialidade com valores, coabitação diversificada. Mas isso não quer dizer que a cultura elimine conflitos e antagonismos, tenha de evoluir e progredir, se resolva por exclusiva legislação e não esqueça os fundamentos religiosos que existem nas culturas. Além disso, a cultura deixa de ser vista como propriedade de indivíduos ou grupos e passa a ser entendida como possuindo diferenças, contrastes e contradições.
Se o segundo exercício vê o multiculturalismo a partir dos países europeus, o terceiro texto aborda-o a partir dos países africanos. O autor dá conta da grande pulsão criativa e cultural actual (p. 45), lembrando os últimos 30 anos (ou um pouco mais) que constituem as independências, com rupturas estéticas com os países colonizadores e sem tradições na formação artística (curiosamente, noutra parte do livro, o autor refere a importância dos centros culturais dos antigos países colonizadores como forma de colmatar essas necessidades organizativas de formação, e o modo displicente como Portugal está a actuar; ver p. 50). Isto é, as formas que evoluem são a criação de identidades próprias e, ao mesmo tempo, a relação amigável com o legado do ex-colono. Por isso, defende um terceiro modelo para além dos previsíveis de cooperação ocidental e da resolução à africana: a negociação cultural (p. 48). Lembra a capacidade criativa de países como Marrocos e Nigéria, com um uso interessante da tecnologia digital, do cinema ambulante e da criação de emprego e do início de uma indústria própria.
O quarto exercício dedica-se à história da cultura em Portugal nas últimas quatro décadas, com Pinto Ribeiro a dividi-la em três grandes ciclos: 1) de 1974 até ao final dessa década, sob a designação de “A cantiga é uma arma”, provocando um amplo debate sobre a cultura artística (p. 59). O segundo ciclo abrange a primeira parte da década de 1980, designada por “cultura à europeia e moderna” e em que aparecem programas e projectos culturais, com consolidação no trabalho das companhias de teatro independente e a criação de um mercado para a música popular e rock. Já o terceiro ciclo vai de 1986 a 1998, o ano da exposição mundial, com uma espécie de slogan “internacionais e cosmopolitas”, a que não faltam megaconcertos em estádios de futebol e construção de grandes equipamentos culturais (Centro Cultural de Belém, Culturgest, Museu de Serralves) e lançamento da rede de bibliotecas públicas (1987) e da rede de teatros (1999). Surge uma nova geração de directores de equipamentos culturais e de programadores, já com experiência internacional nomeadamente a nível da Europa. O autor ainda releva o aumento da informação e a maior velocidade de circulação (p. 62), a banalização do telemóvel e das suas funcionalidades e da blogosfera, das exposições mediáticas (Tate Gallery, Prado) e da falência da crítica de arte. Daqui, pode depreender-se o aparecimento de um quarto ciclo, em que as cidades geram um movimento inusitado nas artes e na cultura. Programador durante onze anos, Pinto Ribeiro dedica 10 páginas do seu livro a reflectir sobre a função, opondo dois modelos fundamentais e distintos: programação feita tendo em atenção os interesses dos públicos; programação de autor. Refiro aqui uma nota interessante do autor sobre a actividade da blogosfera, que, apesar de ter crescido exponencialmente nos dez anos que tem de existência, não significou um aumento dos públicos nos eventos culturais mas obrigou a um reforço de recursos humanos nas organizações culturais para trabalhar esse tipo de comunicação (p. 74).
O último exercício é o menos disciplinado, mais fragmentário, em que o autor retoma um dos seus temas preferidos: as cidades. Assim, escreve entradas sobre cidades perfeitas (a cidade de Deus de Santo Agostinho, a cidade utópica de Fourier, a Ville Contemporaine de Le Corbusier), piscinas, hortas, a história do chá. Textos que reflectem as vivências pessoais de António Pinto Ribeiro.
Leitura: António Pinto Ribeiro (2009). À Procura da Escala. Cinco exercícios disciplinados sobre cultura contemporânea. Lisboa: Cotovia
3 comentários:
Très bien lu.
graça
Things Fall Apart
(v. apresentaçao na news letter da gulbenkian novo programa: Things Fall Apart)
Um livro
“Quando tudo se desmorona”, no original Things Fall Apart, de Chinua Achebe, acaba de ser editado em português graças à editora Mercado das Letras, 50 anos depois da sua primeira edição em inglês e de outras traduções para muitas línguas. Considerado o romance fundador da literatura africana originária da África Anglófona, Things Fall Apart é uma obra fundamental da literatura mundial. Trata-se de um romance que cumpre os mais rigorosos preceitos da epopeia, com um herói em conflito com o destino ao qual não poderá escapar. Começando por ser a história de Okonkwo que ganha a sua notoriedade quando vence uma luta improvável, ela é também a história de uma comunidade rural do centro de África, num tempo que se inicia no pré-colonialismo e que termina já no período colonial de influência inglesa. Nesse tempo pré-colonial um ancião conta: “O Mosquito, contara ela, pedira à orelha que casasse consigo, após o que a Orelha tombou ao chão rebolando-se de riso. «Quanto mais tempo crês tu que irás viver?» perguntou ela. «Já és um esqueleto.» O Mosquito afastou-se humilhado, mas de cada vez que passava junto à Orelha ia dizer-lhe que ainda estava vivo.” (p.67) A tradição oral que é legitimada e exaltada neste romance não inibe uma construção narrativa sólida, excelentemente estruturada em três partes: iniciação do herói e crime contra os deuses, exílio (sete anos, como é comum nas grandes narrativas míticas) e regresso à cidade de origem para que se cumpra o destino, segundo todos os oráculos, os gregos e os africanos. A forma como o colonialismo, as suas contradições, a importância dos missionários brancos (os bons e os maus) e a tecnologia (neste caso, as armas de fogo), como seus instrumentos de alteração de normas de conduta e de valores, e motivo da rebeldia do herói e dos seus parceiros da mesma vila, são descritos com uma clareza e uma evidência histórica de quem aprendeu entre os seus que “a arte da conversa é tida em grande conta e os provérbios são o óleo de palma com o qual as palavras são comidas”( p.11). Um grande clássico da literatura mundial!
António Pinto Ribeiro
À volta de ...
À Procura da Escala (Cotovia, 2009)
Exercício 1. Há, de facto, modos diferentes de governar, inclusivamente na cultura
Exercício 2. A interculturalidade: propósitos e ambiguidades
Exercício 3. Europa-África. E vice-versa?
Em Ouagadougou, Março de 2009
Exercício 4. À procura da escala
Exercício 5. Fragamentos de cidades
A propósito de cidades perfeitas
Um artista de rua
Piscinas
Hortas
Desempregados
Chá
Quarto de hotel numa cidade árabe
Links relacionados:
Leitura de Rogério Santos no blog Indústrias Culturais
Enviar um comentário