sábado, 20 de junho de 2009

SOBRE A FOTOGRAFIA

Quando voltei a olhar para uma das fotografias da pequena colecção que Eduardo Cintra Torres me enviou e que abaixo coloquei, dei-me conta do seu valor sociológico e estético.

Em primeiro lugar, o olhar do fotógrafo sobre a composição principal: os quadros de Claude Monet (série: passeio de senhora com chapéu de sol), uma senhora numa cadeira de rodas e um homem a fotografar a senhora e os quadros. A fotografia de Cintra Torres é basicamente uma imagem sobre a imagem, uma recomposição, um olhar cultural prévio, uma conotação. Talvez seja contrário ao espírito da semiótica, mas a denotação aparece depois da conotação. O fotógrafo da fotografia que coloquei debruçou-se sobre o olhar do outro fotógrafo.

Em segundo lugar, imagina-se uma fotografia capturada pelo fotógrafo que aparece à direita na imagem. Trata-se de uma imagem feita para recordar depois. No início das fotografias com anónimos populares, eles olhavam hirtos para a câmara. Esta era lenta na fixação da imagem e exigia contenção de movimentos. Depois, com a massificação da fotografia, surgiam imagens de amigos em confraternização e em festas, desorganizadas em termos de enquadramento, ou de famílias, com posicionamento bem vincado em termos de hierarquia ou grupo etário (as crianças à frente, o pai ou a mãe em lugar bem destacado no enquadramento da imagem). Por vezes, os fotografados aparecem à frente, ou enquadrados por, (de) um monumento importante de uma cidade visitada, marca do cosmopolitismo. Eram fotografias que se reproduziam em papel e se colocavam em molduras (aprendi a usar o termo francês passepartout), marcas de um tempo ou acontecimento, em que as pessoas eram o elemento principal. A fotografia tirada no museu de Orsay é de uma variante deste tipo: o monumento é substituído por pinturas, possibilidade permitida pela massificação das máquinas digitais, com melhor adaptação a condições de luz e a permissão em museus para fotografar os objectos. A senhora de idade fotografada fica com uma recordação para mostrar a amigos e familiares: a visita ao museu, com uma forte identificação.

Em terceiro lugar, e decorrente da segunda ideia, o acesso à obra de arte, a pluralidade de reproduções nas diversas indústrias culturais, a facilidade de fazer uma imagem com uma máquina digital ou telemóvel (que me parece o caso), terminam de uma vez por todas com a ideia de aura, conceito de Walter Benjamin, a dificuldade de conhecer e aceder a uma pintura ou a uma qualquer imagem que não estivesse dentro do nosso espaço geográfico. Benjamin referia-se à democratização da imagem trazida pelo cinema e, claro, pela fotografia, mas ainda produzida por artistas, técnicos, especialistas. Agora, todas as pessoas podem fazer imagens, acumulam-se dezenas ou centenas ou milhares de imagens sobre um assunto ou acontecimento, há uma maior circulação dos indivíduos pelas cidades do mundo. Ao invés da aura, que dava um cunho de único (e por isso venerável), nasce uma bulimia, provocada pela multiplicação de imagens, sem selecção ou hierarquia das imagens (qualidade, envolvência, oportunidade, significado). O objecto fotográfico não tem valor universal mas apenas individual.

A quarta ideia decorre igualmente das segunda e terceira ideias: o uso social da imagem. Como se guardam imagens no Flickr, no Picasa, no Sapo, no Facebook ou noutro sítio qualquer, ficamos com um grande acervo que permite o estudo das classes sociais, etárias e geográficas. A fotografia está para além do aparelho que fotografa; ela reside muito no olhar que fotografa. Pela fotografia, conhecemos modas, rituais e costumes, valores, relações sociais. Quase que conseguimos fazer história e sociologia de um ano ou de uma região, olhando e estudando essas múltiplas imagens.

Este é um aperitivo para a leitura de O Visual e o Quotidiano, livro organizado por José Machado Pais, Clara Carvalho e Neusa Mendes de Gusmão.

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