domingo, 20 de dezembro de 2009

HANNAH E MARTIN


Durante os julgamentos de Nuremberga, Hannah Arendt (1905-1975) fez o relato para a publicação New Yorker. Visitou a família de Karl Jaspers e, especialmente, Martin Heidegger (1889-1976). Este, que fora seu professor e amante, estava em apuros. Apoiara indiscutivelmente o partido nazi, o que lhe trouxe menosprezo por parte dos políticos e intelectuais no pós-guerra e o afastamento da universidade. Arendt (representada por Ana Padrão) juntara-se ao grupo dos que o vilipendiara, mas arrependeu-se ao compreender as razões de Heidegger (representado por Rui Mendes), ele que a "ensinara a pensar". Acabou por escrever a favor dele e traduzir ensaios do filósofo. Para ela, quem perdia com o silêncio e o desprezo por Heidegger eram a Alemanha e os estudantes.

A peça de Kate Fodor, representada a primeira vez em 2004, e a partir de ontem no Teatro Aberto (Lisboa), conduz-nos, nomeadamente na primeira parte, a um vaivém no tempo, começando num hotel de Nuremberga em 1946, onde Hannah escreve a carta a perdoar Heidegger. Alice (representada por Cátia Ribeiro), jovem assistente e admiradora da filósofa, estava contra a mudança de opinião de Arendt. A peça de mais de duas horas acaba com a confrontação directa entre Heidegger e Arendt como se fosse uma luta wagneriana, em torno do heróico, do povo, da herança clássica grega, da cultura, do poder e da política. Pelo meio, a conversa entre Arendt e Jaspers (Karl representado por Luís Alberto e a mulher Gertrud por Maria Ana Bernauer) indica-nos como Heidegger havia desprezado aquele (por causa da sua mulher, judia), não permitindo sequer entrar na biblioteca da universidade. Heidegger desculpar-se-ia a Arendt, dizendo que não tinha poder, pois o partido nazi estava já descontrolado. A peça também nos mostra a mulher de Heidegger, Elfride (representada por Irene Cruz), possuída pelo ideário nazi e possível influenciadora da adesão do marido ao partido de Hitler.

Dada a complexidade da primeira parte, com o uso do que chamo dispositivo tecnológico (encenação) -, projecção de vídeos históricos e reconstituição do julgamento de Nuremberga, uso de câmaras de filmar que mostram em ecrãs o que se vê no palco, portas que abrem e fecham para dar nota dos saltos no tempo narrativo, som com microfone enquanto decorrem cena na cabana, palco dentro do palco como se fosse um peep-show que permite olhares indiscretos (voyeuristas) sobre uma relação íntima - é difícil a compreensão. Na minha leitura, na representação de ontem, os próprios actores sentiam-se desconfortados - com pequenas falhas no texto, dramatismo nas cenas da cabana (com o som a não ajudar), marcações de luz por vezes desfasadas. A segunda parte correu melhor, caso do longo diálogo entre Arendt e Heidegger, em que os actores estavam mais libertos e mostraram o seu valor.

A duração da peça significa um grande esforço para os actores, com destaque para Ana Padrão, quase sempre em palco e a dirigir-se ora para a audiência ora a pôr-se em acção com os outros actores, e cuja voz quase se perdeu mesmo no final quando Arendt e Alice discordam do teor da carta de reabilitação de Heidegger. Por seu lado, Rui Mendes aparece com a camisa suada, prova desse esforço em palco. O público não foi tão generoso nas palmas como os artistas mereciam, em especial Ana Padrão (ver entrevista antiga dada à Máxima) e Rui Mendes.

A peça tem dramaturgia de Vera San Payo de Lemos e encenação e realização vídeo de João Lourenço. A autora, Kate Fodor, é docente e autora teatral na Universidade da Pennsylvania, vivendo em Bucks County com o marido e a sua filha Lucy.

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