"As vidas invisíveis das empregadas internas" é o título de capa da Pública de hoje (texto de Luís Francisco). Em tema, a vida das empregadas domésticas internas, com histórias daquelas mulheres que trabalham em casa de outros, criam filhos que não são os seus e partilham alegrias e tristezas dos seus patrões. São histórias de vida: Henriqueta, Francisca, Lurdes. A Associação das Criadas de Servir tem estatutos de 1932 e artigos da imprensa na década de 1960 indicam que as empregadas internas não queriam fardas. Hoje, o Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Actividades Domésticas abrange a defesa do interesse dessa actividade. Outrora, o trabalho pertencia a mulheres vindas da província, hoje, são imigrantes que ocupam as tarefas.
O tema parte da peça de Jorge Silva Melo, Fala da criada dos Noailles que no fim de contas vamos descobrir chamar-se também Séverine numa noite do inverno de 1975, em Hyères, actualmente a ser representada no teatro da Trindade (Lisboa). Séverine era o nome da empregada que trabalhava na casa dos condes de Noailles e que posava para pintores e entrou no filme de Luis Buñuel L'Âge d'Or (1930). Outros criados eram Mariette, Gisette, Lilette, Josette, Gaston.
A peça, inspirada em O Meu Último Suspiro, livro de memórias de Buñuel, e nas botinas do seu Diário de uma Criada de Quartoconta a história dos Noailles vistos a partir das recordações da criada Séverine (numa belíssima interpretação de Elsa Galvão). Os Noailles verdadeiros tinham casado em 1923. Já antes do casamento eram amigos de Jean Cocteau e Picasso; depois tornaram-se amigos, apoiaram projectos e compraram obras de, entre outros, Man Ray, Salvador Dalí, Balthus, Brancusi, Miró e Buñuel (caso do filme L'Âge d'Or). Importantes mecenas do cubismo e do surrealismo, a casa dos Noailles foi ocupada pelo exército italiano na Segunda Guerra Mundial e transformada em hospital. Depois, continuou a ser a residência dos Noailles, hoje é um centro de arte.
A criada Séverine mostra a vida íntima, social e artística dos condes segundo a sua cultura e perspectiva. Começa com a história do jantar do artista D. Luis Buñuel com o seu antigo mecenas e amigo Conde de Noailles, onde comem pescada cozida. Fala incessantemente de números: as 150 personagens de Buñuel, os 356 desenhos (de Picasso), as 203 lâmpadas fundidas do candelabro. De Picasso, sem o nomear, "Diz que é espanhol. Espero que não seja aquele pequenito e entroncado que me apalpava o rabo sempre que eu o ia servir e que vinha cá com uma mulher diferente sempre mesmo que fosse hoje e no dia seguinte e depois de amanhã". Sobre Wagner, também sem o nomear, a criada fala de "Uma música muito complicada que o senhor conde também gostava muito. A música da Isolda, morte dela ou assim. A Isolda era uma cadela da senhora condessa que dormia com ela e um dia morreu e fizeram esta música, a morte da Isolda". Sobre os artistas, a criada enuncia apenas os nomes próprios - Monsieur Jean [Cocteau], Monsieur Maurice [Ravel] (cujo ritmo e repetição musical ajudava a bater claras em castelo) -, refere-se perifrasticamente - "o espanhol pequenito e entroncado", "o rapaz do peito sem pêlos"). No final, surgem os fantasmas de 32 mecenas a invadir a cena, como Peggy Guggenheim, Calouste Gulbenkian, Catarina da Rússia e o próprio conde Charles de Noailles. Surgem outras citações ao vivo, como Déjeuner sur l'herbe de Manet.
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