Aparentemente, as peças pareciam trocadas. In the woods (de Stephen Sondheim) é um musical a partir dos contos dos irmãos Grimm e também Charles Perrault: capucinho vermelho, cinderela. Mas, a segunda parte da peça, após a satisfação dos desejos, torna-se mais complicada. Se, até aí, cada personagem dependia da sua sorte pessoal, dos desejos individuais se cumprirem, na segunda parte todos precisam de todos para se salvarem do gigante. A assistência, de cabelos grisalhos na sua maioria, conhecia-se entre si, formando uma comunidade de interesses. Lembrei-me de uma zarzuela que vi em Madrid. O espírito é semelhante: o teatro de amadores. Mas, enquanto em Madrid era um teatrinho, em Ottawa a sala da sociedade de teatro musical Orpheus, associação criada em 1906, tinha uma dimensão apreciável, só com plateia. A sociedade é composta por muitos amigos, colaboradores e voluntários; daí os cumprimentos no começo e as apreciações no intervalo e no final do musical.
A peça no NCA, em francês, conta a verdade de um soldado (Vérité de soldat, de Soungalo Samaké, com texto adaptado de Jean-Louis Sagot-Duvauroux), peça em torno da independência do Mali, antiga colónia francesa, e dos golpes de Estado subsequentes. Cinquenta anos de independência do Mali representados por um narrador, por um soldado e por uma mulher. Há uma diálogo permanente entre o narrador e uma das outras personagens, frente a frente, ou com o soldado voltado para a plateia interrogado pelo narrador, antigo torturado por aquele. Quando narrador e mulher ou narrador e soldado estão frente a frente, a personagem à direita do palco é filmada e projectada em ecrã no fundo do palco. O soldado fala frequentemente em mali, com legendagem em francês. Não há movimento, mas os diálogos dão conta de uma grande plasticidade e de uma grande emoção. O que aconteceu no Mali, aconteceu possivelmente em Angola, na Guiné-Bissau, em Moçambique. E anteriormente no Brasil e no Canadá, aqui com especificidades, pois o grupo triunfador nasceu do seio do antigo colonizador. A mensagem do colonizador é substituída por outras forças que demoram a ajustar-se e a prosseguir num sentido justo. O soldado é autor e vítima dessas transformações: de agricultor, alistou-se como voluntário nos para-quedistas e serviu sucessivamente as forças coloniais, as da independência e das forças do golpe de Estado. Vigilante do deposto presidente, com a morte súbita deste, é preso e condenado. Mais tarde, é libertado e enceta conversa com o narrador, que torturara, devido à ligação pessoal com o presidente deposto. A mulher, que a independência e o golpe militar não haviam considerado como género igualmente com direitos, foi a mais relutante em aceitar as justificações do soldado. Contudo, este, apesar de polícia do presidente deposto, criou uma deferência grande para com ele.
Se o teatro da peça musical estava cheio, o teatro da NAC não tinha muita assistência. A primeira peça era de divertimento, a segunda obrigava a uma reflexão. O movimento, a alegria e a música da primeira não se comparavam com a densidade textual da segunda – apesar do texto ser uma longa conversa.
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