
Mais do que isto, eu vi como a rápida transformação da China de país subdesenvolvido em país capitalista, embora sob a égide do Partido Comunista, transforma a vida de cada indivíduo. A pessoa pouco conta dentro das mudanças, originadas por forças contraditórias, sem grandes ideais e valores morais. Violência quase gratuita, desejos e realização de poder e afirmação, ganância, suborno e atropelos onde o homem não conta mais do que o animal, onde a justiça é praticada individualmente sem normas.
Há uma permanente mensagem simbólica, como a do homem que chicoteia o cavalo (uma força lenta e irracional face à máquina - a mota ou o automóvel) ou do pequeno macaco que está preso e permanece sobre os ombros do proprietário, equivalente à tareia do condutor da camioneta que se recusa a pagar a portagem a um grupo de bandidos. Ou do gado transportado numa outra camioneta e que a mulher que trabalha na sauna vê momentaneamente como inimigo. Outro elemento simbólico é o gesto do mineiro que observa a queda de uma outra camioneta que transportava tomate - ele brinca com um dos tomates enquanto assiste à presença de autoridades que confirmam o acidente. Este é uma perda, um pequeno acidente que nos transporta do mundo rural para o consumo urbano.
Com frequência, o realizador contrasta os prédios elevados da moderna cidade, ao fundo, com o ambiente rural, em decomposição, a que os personagens principais voltam para resolver os seus problemas: a rapariga que se prostitui no hotel de luxo que foi ver a sua filha pequena, o criminoso que volta rapidamente para os anos da mãe e regressa ao mundo do roubo e do assassínio, o rapaz que trabalha numa linha de montagem da fábrica e que fala com a mãe, algures numa aldeia distante.
O fogo de artifício e o teatro de rua são elementos culturais que ligam esse mundo aldeão e antigo em desmoronamento e o novo mundo de cenário moderno que é a cidade do comboio de alta velocidade e das luzes de néon. O mundo capitalista chinês é um mundo masculino e jovem - são os homens que tomam as grandes decisões: trabalham, roubam, constroem impérios económicos, usam as mulheres (prostituição, adultério) e as subjugam (como a mulher do ladrão que pede para ele, ao menos, comprar um telemóvel; o homem recusa porque sabe que seria facilmente detectado mesmo com movimentos numa imensa China).
De repente, lembrei-me como seria mais fácil contar a história do desenvolvimento do capitalismo europeu do século XVIII através deste filme. Mas no filme a evolução é muitíssimo mais rápida e as movimentações de massas rurais em busca de trabalho na cidade ainda mais violentas do que no tempo em que os media e os transportes não existiam ou eram lentos e movidos a energia humana ou animal. Aeroportos, linhas ferroviárias, auto-estradas, produção massificada de produtos industriais, automóveis de topo de gama - toda a mostra de bens do capitalismo actual estão ali presentes. Com as lágrimas, os insucessos e a desilusão de sempre.
Sem comentários:
Enviar um comentário