domingo, 26 de janeiro de 2014

Um toque de pecado


"Um mineiro revoltado luta contra a corrupção dos líderes da sua aldeia. Um homem regressa a casa na véspera de ano novo e descobre as infinitas possibilidades de uma arma de fogo. Uma bela rececionista numa sauna é levada ao limite quando é assediada por um cliente rico. Um jovem trabalhador fabril salta de trabalho em trabalho à procura de uma vida melhor. Quatro pessoas, quatro províncias da China. Uma reflexão sobre a China contemporânea: um gigante económico que lentamente vai sendo minado pela violência" (da sinopse do filme China - Um Toque de Pecado, de Jia Zhangke, com Tao Zhao, Vivien Li, Wu Jiang e Zhang Jia-yi).

Mais do que isto, eu vi como a rápida transformação da China de país subdesenvolvido em país capitalista, embora sob a égide do Partido Comunista, transforma a vida de cada indivíduo. A pessoa pouco conta dentro das mudanças, originadas por forças contraditórias, sem grandes ideais e valores morais. Violência quase gratuita, desejos e realização de poder e afirmação, ganância, suborno e atropelos onde o homem não conta mais do que o animal, onde a justiça é praticada individualmente sem normas.

Há uma permanente mensagem simbólica, como a do homem que chicoteia o cavalo (uma força lenta e irracional face à máquina - a mota ou o automóvel) ou do pequeno macaco que está preso e permanece sobre os ombros do proprietário, equivalente à tareia do condutor da camioneta que se recusa a pagar a portagem a um grupo de bandidos. Ou do gado transportado numa outra camioneta e que a mulher que trabalha na sauna vê momentaneamente como inimigo. Outro elemento simbólico é o gesto do mineiro que observa a queda de uma outra camioneta que transportava tomate - ele brinca com um dos tomates enquanto assiste à presença de autoridades que confirmam o acidente. Este é uma perda, um pequeno acidente que nos transporta do mundo rural para o consumo urbano.

Com frequência, o realizador contrasta os prédios elevados da moderna cidade, ao fundo, com o ambiente rural, em decomposição, a que os personagens principais voltam para resolver os seus problemas: a rapariga que se prostitui no hotel de luxo que foi ver a sua filha pequena, o criminoso que volta rapidamente para os anos da mãe e regressa ao mundo do roubo e do assassínio, o rapaz que trabalha numa linha de montagem da fábrica e que fala com a mãe, algures numa aldeia distante.

O fogo de artifício e o teatro de rua são elementos culturais que ligam esse mundo aldeão e antigo em desmoronamento e o novo mundo de cenário moderno que é a cidade do comboio de alta velocidade e das luzes de néon. O mundo capitalista chinês é um mundo masculino e jovem - são os homens que tomam as grandes decisões: trabalham, roubam, constroem impérios económicos, usam as mulheres (prostituição, adultério) e as subjugam (como a mulher do ladrão que pede para ele, ao menos, comprar um telemóvel; o homem recusa porque sabe que seria facilmente detectado mesmo com movimentos numa imensa China).

De repente, lembrei-me como seria mais fácil contar a história do desenvolvimento do capitalismo europeu do século XVIII através deste filme. Mas no filme a evolução é muitíssimo mais rápida e as movimentações de massas rurais em busca de trabalho na cidade ainda mais violentas do que no tempo em que os media e os transportes não existiam ou eram lentos e movidos a energia humana ou animal. Aeroportos, linhas ferroviárias, auto-estradas, produção massificada de produtos industriais, automóveis de topo de gama - toda a mostra de bens do capitalismo actual estão ali presentes. Com as lágrimas, os insucessos e a desilusão de sempre.

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