“O Jazz-Band é o triunfo da dissonância, é a loucura instituída
em juízo universal, essa caluniada loucura que é a única renovação possível do
velho mundo. Ser louco é ser livre, é ser como a inteligência não sabe mas como
a alma quer. Os loucos são os grandes triunfadores da Criação. […] O Jazz-Band
é a proclamação dessa loucura. O Jazz-Band, a encarnado e negro, a todas as
cores, é o relógio que melhor dá as horas de hoje, as horas que passam a
dançar, horas fox-trotadas, nervosas. No Jazz-Band, como num écran, cabem todas as imagens da vida
moderna. Cabem as ruas barbáricas das grandes cidades, ruas doidas com olhos
inconstantes nos placards luminosos e
fugidios, ruas eléctricas, ruas possessas de automóveis e de carros, ruas onde
os cinemas maquilhados de cartazes têm atitudes felinas de mundanas,
convidando-nos a entrar, ruas ferozes, ruas-panteras, ruas listradas nas
tabuletas, nos vestidos e nos gritos. As mulheres gostam de dançar, sobretudo
porque não gostam de estar paradas. E, entretanto, a dança é a parada das
mulheres, uma parada onde elas exibem, como uniformes, as suas toilettes multiformes, a parada onde
elas jamais estão em sentido porque estão sempre em sentidos. As mulheres
dançam, afinal, porque são mulheres, dançam como as cigarras cantam. […] O
fox-trot é a dança boémia, estouvada, a dança-baloiço a dança que não se
importa, a dança que não pensa no dia de amor. Amor nascido numa valsa é amor
que casa, amor para sempre. Amor nascido no fox-trot é amor que morre no
fox-trot, amor que dura um beijo. O one-step é, porém, a mais perigosa das
danças porque é o rapto. Há mulheres que fogem num one-step, como num
automóvel. Uma mulher num one-step é uma mulher em viagem. O Tango é uma dança
de forças combinadas, uma dança tira-linhas. O maxixe é uma aliança de corpos.
E, finalmente, o schimmy é a dança livre, a dança em que os braços e as pernas
se encontram como camaradas e se embriagam juntamente no Champagne dos gestos,
no ópio dos olhos furiosos, na electricidade metálica dos corpos. […] é curioso:
a América, que vibra toda no ritmo do jazz-band, quase não dá pelo jazz-band. A
Europa envelheceu, teve um abaixamento de voz com as emoções da guerra. A
Europa lembrava um soprano lírico em decadência. [...] Simplesmente o que na
América é vulgar, natural, quotidiano, na Europa é artificial, escandaloso,
apoteótico. Na América, o jazz-band tem um ritmo de marcha. Na Europa é um
hino. […] O jazz-band é a África do ritmo. Só as almas violentas se podem
entender dentro dele. Um fox-trot, no jazz-band, é uma sanzala em delírio. O
Jazz-band é a orquestra dos gritos inesperados, dos silvos, dos assobios. O
Jazz-band é a orquestra que melhor dá o contrato do Homem e da Mulher. O
Jazz-band é brutal como um amante severo, meigo e triste como companheira submissa.
É autoritário como um marido déspota, lânguido e amoroso como uma mulher
obediente. O Jazz-band é homem no claxon, nos assobios e no bombo, e mulher nas
cordas gemedoras de banjos. O Jazz-band é, portanto, toda a natureza humana”.
Marinetti, o futurismo, uma liberdade (ou descompressão) saída da Primeira Guerra Mundial, mas que desembocaria nas tragédias das ditaduras das décadas seguintes e a poesia de um jovem artista explicam as metáforas (loucura, violência, hino, escândalo), as aliterações e todas as imagens (mesmo algum machismo) do texto. A música (o jazz e a dança), a beleza feminina, a alegria de viver e as máquinas (o automóvel, a electricidade) eram o pano de fundo do texto. Este foi apresentado em diversas conferências que Ferro proferiu no Brasil (Rio de Janeiro, S. Paulo, Belo Horizonte) em 1922 e 1923.
Leitura: António Ferro (1924). A Idade do Jazz-Band. Lisboa: Portugália, pp. 60-61-64-65-66-68-74
Sem comentários:
Enviar um comentário