segunda-feira, 9 de maio de 2016

Ao Vivo e em Direto no Teatro Aberto

Gosto de teatro mas não sou crítico de teatro. Logo, não sei escrever um texto sobre o que vi enquanto espectador com o aparato conceptual próprio do crítico. O que debilita a leitura ou interpretação. Mas sei que gosto de compreender a história que vejo e as opções tomadas na representação. Concluo pela existência de camadas de interpretação: o autor, o encenador, os atores, o espectador.

Por isso, convidei o autor da peça Ao Vivo e em Direto em representação no Teatro Aberto, Raul Malaquias Marques, a explicar a história e os fios narrativos, em aula de estudos de jornalismo. Ele esclareceu algumas questões que eu formulara a mim mesmo quando vi a peça.

A peça, vencedora do Grande Prémio de Teatro SPA/Teatro Aberto 2014, tem seis personagens (Homem, Diretor, Mulher, Filha, Jornalista, Inspetor) e vozes (jornalistas dos diretos) e dois homens de óculos escuros. Primeira inquietação: não há nomes nas personagens, perguntou uma aluna. O autor disse querer universalizar a situação, que se podia passar em qualquer parte do mundo. Aliás, no frontispício da peça (chamemos-lhe assim), Raul Malaquias Marques escreveu: "A ação decorre na atualidade, num pais igual a outros". Sem sinais de identificação identitária, torna-se mais fácil desterritoralizar a ação.

Ao Vivo e em Direto significa quatro pilares da realidade diária: a comunicação social (o diretor de informação e o jornalista que prepara um programa de entrevistas), o poder político (o homem, que foi ministro, presidente de empresas estratégicas, agora arrependido da evolução de um processo político, pois as suas práticas não seriam as mais sérias), a justiça (o poder do tribunal, a força das fontes e dos grupos de pressão) e a família. O julgamento que se seguira ao processo não fornecera um apuramento de provas, pelo que não houve culpados. Mas um jornalista morrera (fora assassinado, esclarece o Homem quando é entrevistado, agora que se arrependeu e ganhou coragem para o dizer publicamente).

O encontro do diretor de informação e do Homem, num local ermo da cidade, tem o lado de intriga policial e que também remete para o mundo da relação entre jornalistas e fontes noticiosas, quando estas têm interesse de promover a divulgação de uma ação. No caso, é a recuperação de uma situação que fora escândalo, embora o caso tivesse prescrito pelos anos de intervalo entre o acontecimento e a atualidade. Enquanto o Homem preparava a entrevista, a peça regista três momentos específicos. Um é a discussão entre diretor de informação e jornalista, onde se revela a concorrência interna de um meio de comunicação: o primeiro pedira discrição na procura de informação para apoio à entrevista; um velho político telefona ao diretor a tentar impedir a entrevista. Isso revela que rapidamente houve circulação de informação e revelação do que se pretendia ser discreto. O diretor acusa o jornalista de fuga de informação. Outro é a curiosidade da mulher do antigo político, quando o vê a manusear alguns velhos dossiês. Ela, em momento oportuno, lê os dossiês e fica assombrada com a informação, fazendo fotocópias. O terceiro é quando o Homem diz que, a acompanhar as revelações, vai depositar a informação em boas mãos.

Raul Malaquias Marques realça a ambiguidade da trama narrativa. Não se sabe em que boas mãos foi depositado o dossiê nem se sabe o que a mulher fez com as fotocópias. O que a peça revela é que o Homem, feita a declaração, se suicida, dando um tiro de pistola em si mesmo - ao vivo e em direto. Isto tem duas consequências: a audiência do canal subiu muito, levando a administração a elogiar o diretor de informação; este vê-se obrigado a falar na televisão a pedir desculpa pelo acidente grave. Embora o texto seja omisso, o diretor de informação saberia do desfecho, tal o desespero do Homem. Por isso, o autor acha que a sua personagem é oportunista, o contrário do perfil ideal de jornalista que se ensina nas minhas aulas. Além disso, a ideia de denúncia, como aparece na peça, não é própria do jornalista. Este observa o poder e as máscaras com que ele se apresenta e questiona e escrutina. A comunicação social, para o autor, é a-poder. O poder vem da prática. A peça é, assim, sobre a relação entre os media e o poder. Mas não é sobre o espetáculo mediático, espaço em que se encontram hoje os media.

Peça ambígua, história sombria, conclui o autor. Alguns elementos ficam por explicar. Por exemplo, não se sabe o que a mulher fez quando o político se suicidou. Ela teve coragem de continuar a denúncia iniciada pelo marido? Se ela não conhecia muito bem as rotinas do marido porque se quis encontrar com o diretor de informação no mesmo local afastado da cidade? E qual o comportamento da filha? Dado ela ter vivido uma adolescência traumatizante por causa do julgamento do pai, porque aparece numa posição tão libidinosa? Não deveria ter uma postura mais fechada? E qual a profissão da mulher? Talvez doméstica mas com estudos, foi respondido. E quando escreveu o autor a peça? Foi influenciado por algum processo que se veiculou nos media dos últimos anos?

Raul Malaquias Marques foi jornalista em Rádio Clube de Moçambique, regressando a Portugal em 1977 para trabalhar na agência noticiosa ANOP, depois Lusa, onde escreveu maioritariamente sobre política internacional e cultura. A peça reflete o seu conhecimento dos media, mas não necessariamente da televisão, como fez questão de indicar. Rapidamente, durante a aula, o autor refletiu sobre ética e responsabilidade dos media na atualidade e sobre a relação entre a notícia de agência noticiosa e os media que dão as notícias ao público. E voltou a frisar a importância da análise do poder pelos media.

Intérpretes: Ana Lopes, Dina Félix da Costa, Emanuel Rodrigues, Francisco Pestana, Maria Emília Correia, Paulo Pires, Rui Mendes, Tiago Costa e Vítor d’Andrade. Encenação e dramaturgia de Fernando Heitor, cenário de Eurico Lopes, figurinos de Dino Alves e desenho de luz e vídeo de José Álvaro Correia (fotografia fornecida pelo Teatro Aberto).




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