sexta-feira, 10 de março de 2017

Em defesa da História - e da rádio

Esta semana, tenho ouvido muito falar de sessenta anos da RTP. Isto é errado, porque quer dizer apenas televisão.

Hoje, a sigla RTP - Rádio e Televisão de Portugal - representa isso mesmo, rádio e televisão públicas. A meu ver, a fusão deu-se tarde demais. No caso inglês, BBC, depois de um curtíssimo período de propriedade privada, significou o serviço público de rádio, primeiro, e televisão, depois. Isto deveu-se a processos tecnológicos, pois a oferta da televisão surgiu pouco antes da II Guerra Mundial, quando a rádio se desenvolveu logo depois do final da I Guerra Mundial.

Como o processo português de fusão da rádio e da televisão ainda é recente, surgem estas confusões. Na realidade, o que se comemora por estes dias não são sessenta anos de RTP mas sessenta anos de televisão. A rádio é mais antiga.

Sem ser desmancha-prazeres, até a data de comemoração está incorreta. Como Portugal é um país excessivamente legalista, a comemoração utiliza datas formais, de autoridades que visitam e inauguram. Como diria o linguista John L. Austin, a data de inauguração é performativa. Basta dizer para se realizar. Ora, a televisão começou a emitir antes de março de 1957. Em setembro de 1956, emitiu regularmente, com uma grelha de programas, entrando depois em silêncio para profissionalizar a sua atividade. De setembro de 1956 a março de 1957 passaram cerca de cinco meses de grande trabalho mas as fontes comemorativas parecem não querer marcar o período inicial como fazendo parte da História da empresa de televisão. Contudo, diz-se que Maria Armanda Falcão (Vera Lagoa) foi a primeira apresentadora da televisão. Isso foi no período experimental. Além disso, a televisão nasceu semi-pública (ou semi-privada, pois 2/3 do capital da estação era privado).

A rádio pública foi inaugurada em agosto de 1935 (1 de agosto para os puristas, 4 de agosto para os comemoradores da abertura oficial, quando Carmona foi inaugurar a estação), mas ela já emitia desde meados de 1934. Do mesmo modo, não se considera a estação de rádio como estando a funcionar desde 1934, porque se esperou pelo momento celebratório. Aqui, houve - na minha leitura - um elemento conspiratório. António Joyce era o presidente da rádio oficial (rádio pública) em 1934, mas foi substituído em 1935 por Henrique Galvão, então um forte discípulo de Salazar. Para evitar atribuir valor a Joyce, o regime quase fez desaparecer a sua importância. E, de então para cá, os historiadores marcam o começo da rádio de Estado no período mais recente.

Conclusão: não são sessenta anos de RTP mas, desde a fusão de rádio e televisão, a RTP tem dois momentos de aniversário, o da rádio e o da televisão. O aniversário que conta é o mais antigo - 82 anos. Um elemento suplementar: Manuel Bivar, vogal da direção da Emissora Nacional (rádio do Estado) desde o tempo de Joyce foi nomeado vogal da administração da RTP (televisão pública). E na primeira administração da televisão estava o homem-forte de Rádio Clube Português: Jorge Botelho Moniz. Os primeiros estudos da televisão em Portugal fizeram-se nos escritórios da estação de rádio pública. Compreende-se, porque a tecnologia da rádio nasceu primeiro que a televisão. Os estatutos iniciais da Emissora Nacional (1933) falam na exploração da radiodifusão e da televisão, num momento em que esta era ainda quase teoria.

Hoje, a euforia da imagem quer fazer esquecer a importância do som. A não ser que a televisão tenha morto em definitivo a rádio.

1 comentário:

Audio Press Portugal disse...

Muito bem! Grata! Mafalda Ramos