sábado, 25 de março de 2017

Sónia / Clara

A atriz Sónia Braga e a personagem Clara, em Aquarius, têm pontos em comum: mulheres determinadas mesmo que tudo esteja contra elas, elas viveram, amaram e sofreram muito, são já velhas (a atriz com 67 anos, a personagem com 65 anos). Mas há diferenças, apesar de eu ver complementaridades: a atriz não se casou e não tem filhos, a personagem é viúva e mãe de três filhos e avó. Clara teve um cancro em 1980, a atriz mostra o seio direito destruído pelo cancro, no que é uma das cenas mais pungentes do filme.

Aquarius conta a história da tentativa de demolição de um prédio de Recife dos anos 1940 (chamado precisamente Aquarius) para substituição por um arranha-céus, imagem moderna da baía da cidade. Naquele momento, o seu apartamento é o único habitado; a construtora já comprara o resto do edifício. O filme assenta, pois, numa contradição: a memória histórica perde-se, de um tempo em que os habitantes saíam à rua e se agradavam com a paisagem do oceano Atlântico para um tempo de prédios com vigilância e segurança com medo de assaltos. O sol que banha a praia acaba às três da tarde, por causa da sombra causada pelos prédios. Mesmo a ida a banho está proibida pois os tubarões frequentam a zona.

Clara sente-se ameaçada pela construtora que quer demolir o prédio para construir um novo. Mas ela combina a qualidade de vida - poder ir à margem marítima quando quer, caminhar ao longo da praia - e a persistência e a memória. Ali viveram os seus filhos e ela foi feliz com o marido. Antiga jornalista e crítica musical tem força para combater.

O filme é realista - no sentido em que há cenas de uma crueza grande. Por outro lado, conta-nos uma história de resistência social e política. O realizador Kleber Mendonça Filho quis filmar num dos últimos prédios existentes dessa paisagem em desaparecimento. Já tinha mesmo idealizado cenas numa das suas dependências. Apesar da luta contra o desaparecimento do prédio, ele acabou por ir abaixo antes do começo das filmagens. Restava um só - foi nele que o filme foi realizado.

Hoje, quando caminhava pelas avenidas da República e de Fontes Pereira de Melo, aqui em Lisboa, procurei recuperar um movimento idêntico de alteração urbanística verificada na louca década de 1980. Tudo o que era palacete ou prédio de três andares de uma época entre o começo do século XX e 1940 quase desapareceu. Ficaram alguns prédios com o prémio Valmor e alguns estão degradados hoje. Os passeios largos e recuperados este ano não escondem essas feridas urbanísticas, chame-se progresso ou modernização.

Voltando à atriz que desempenha o papel de uma personagem, recordo o impacto que teve o desempenho de Sónia Braga na telenovela Gabriela, a contracenar com Armando Bogus (Nacib) [na imagem abaixo: Gabriela e Nacib], Paulo Gracindo (Ramiro Bastos), José Wilker (Mundinho Falcão), Nívea Maria (Gerusa Bastos), Elizabeth Savalla (Malvina Tavares) e Fúlvio Stefanini (Tonico Bastos), entre outros. A telenovela, que passou em 1977 em Portugal, causou muito sucesso. Sónia Braga, a interpretar Gabriela, personagem de vestidos curtos e sempre descalça, trabalhadora e por quem os homens se apaixonavam, tornou-se um símbolo sexual em país saído de uma longa ditadura, marcando modas e conceitos morais distintos. Agora, vemos uma mulher amargurada e quase sempre sem sorriso, mas a lutar, quase um exemplo de vida.


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