sábado, 17 de fevereiro de 2018

Da medalha da UCP e da biblioteca

Fiquei muito emocionado na cerimónia de ontem da entrega de diplomas com a atribuição da medalha UCP que me foi feita. Muito obrigado à Universidade Católica Portuguesa (imagens de Rita Curvelo, UCP e Patrícia Cardoso).






Na cerimónia, era para ler um texto sobre a biblioteca, que não cheguei a fazê-lo, devido à emoção. Fica aqui abaixo:

A biblioteca é o espaço que alberga livros, memória do conhecimento das culturas, com posições, muitas vezes, complementares ou contraditórias. Se a pudéssemos ouvir, a biblioteca seria um conjunto de múltiplas vozes. Num dos seus mais famosos romances, Umberto Eco escreveu sobre o diálogo estabelecido entre livros numa biblioteca. Os livros citam outros livros que, por sua vez, identificam mais livros, num circuito quase infinito de transmissão e interpretação.

Na Grécia do século VI a. C., a biblioteca substituíra funcionários específicos que executavam um trabalho para a sociedade não letrada, a perseveração oral de regras e os precedentes e a cronologia do passado, os memorizadores, como escreveu Eric Havelock (1996). Já para Harold Innis (1964), pai da escola canadiana da comunicação, o nosso conhecimento das outras civilizações depende muito do carácter dos media ali usados. Innis dividiu os meios de comunicação em leves e pesados. Os media leves, como papiro e papel, representam civilizações alargadas no espaço, ao passo que os media pesados como catedrais ou palácios – a que ele alcandorou ao estatuto de elementos de comunicação – significam civilizações que se estendem no tempo. O resultado é: cada meio de comunicação utiliza um tipo de escrita e, por sua vez, produz um tipo de monopólio do conhecimento. Innis não se terá debruçado sobre a biblioteca, que é, a meu ver, simultaneamente um meio pesado e alargado no tempo (edifício) e leve e que chega espacialmente muito longe (armazena livros).

Da história das bibliotecas lembro as antigas, como a de Alexandria, no Egito, com 700 mil volumes manuscritos em rolo de papiro e que ardeu. Parte do que se perdeu tinha sido, entretanto, traduzido; tal conhecimento chegou muito depois ao ocidente europeu. Também sabemos que, atualmente, a biblioteca do Congresso dos Estados Unidos é a maior do mundo. Da minha experiência, a sala de leitura geral da Biblioteca Nacional, ao Campo Grande, com a tapeçaria de Guilherme Camarinha ao fundo, é um local agradável para ler. E recordo a biblioteca joanina da Universidade de Coimbra, pelo espetacular dispositivo barroco de livros e prateleiras.

À biblioteca junto o arquivo. Tenho a Torre do Tombo como exemplo, onde se podem consultar documentos de instituições, ministérios e dirigentes políticos. O arquivo é do domínio das fontes primárias, de documentos privados e públicos, escritos com fins objetivos. A biblioteca é o espaço de fontes secundárias, de livros que, muitos deles, resultam da leitura e interpretação de arquivos. Com regularidade, a biblioteca tem a extensão de arquivo. Menciono a biblioteca e o arquivo fotográfico da Cinemateca e o arquivo musical da Biblioteca Nacional, com este a congregar arquivos de compositores ou artistas, doados por familiares ou associações. A nossa Biblioteca João Paulo II domicilia, por exemplo, o Centro de Documentação Europeia e arquivos pessoais (Cardeal Cerejeira, Ruy Cinatti, outros).

O arquivo é o depoimento ou testemunho (escutado, oral), escreveu Ricoeur (2012). Este autor enfatiza o testemunho como memória declarada, que entra no domínio do documento, tornado parte do arquivamento (lido, consultado). Ricoeur vai mais longe: como tudo o que está escrito, um documento na biblioteca ou no arquivo está disponível a quem o quer ler. Não há um destinatário preciso, diferentemente do testemunho oral, dirigido a um interlocutor específico. Sempre, ou quase sempre, o documento é lido fora do contexto original, funcionando como intrusão.

Ricoeur não analisou o doador de livros. O que eu fiz, ao criar núcleos de jornalismo e media, estudos de televisão e teorias da comunicação e colocar na coleção da nossa biblioteca, indica linhas de orientação e pesquisa. A opção de aquisição de cada volume em particular resultou de leituras e de aconselhamento de novas leituras, como se fosse construindo um mapa de produção do conhecimento, desenhado de modo inconsciente. Repete-se a ideia de circuito permanente de transmissão e interpretação. O investimento feito corresponde ainda ao conceito de Pierre Bourdieu: a aquisição de capital simbólico e cultural.

Deixo a pista tecnológica da desmaterialização. No arquivo sonoro da RTP, além de discos de vinil, há documentos sonoros em DAT (fita magnética digital) e formato mp3, o que obriga a manter diferentes reprodutores tecnológicos para leitura. A Biblioteca Nacional guarda jornais em papel e microfilme, a Hemeroteca Municipal tem-se esforçado por digitalizar documentos como revistas e os tornar públicos.

Concluo com uma distinção subjetiva entre arquivo e biblioteca. O arquivo resulta de documentos elaborados mas também de trocas epistolares sobre viagens e visitas e escritos mais comuns como pedidos, petições e postais de aniversário. A biblioteca possui livros escritos por quem refletiu após leituras e confronto de ideias. Tal indicia a biblioteca como espaço de sabedoria. Daí o meu conselho: visitar a biblioteca e descobrir o que de importante ela tem para nos revelar. Muito obrigado.


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