SOBRE OS WEBLOGS - II
No encontro de weblogs de Setembro de 2003, assinalado em texto anterior, uma nota predominante foi a da consideração do novo meio como auxiliar do jornalismo. Parte dos oradores e da audiência do encontro encontra-se ligada ao jornalismo; daí essa tendência.
Mas, no espaço público, apareceriam necessariamente mais tipos de weblogs. A discussão gerada e a contínua informação sobre a facilidade de construção de páginas do novo meio possibilitou a emergência desses novos tipos de weblogs. Os últimos meses provaram que, quer esteticamente quer a nível das especializações, o novo meio se traduz na constituição de uma rede de sistemas múltiplos que dá relevo ao fragmento. Ou seja: há um todo mas onde as parcelas têm igualmente muita importância. De certo modo, podemos dizer que se assiste a um retorno de uma ideia fulcral do romantismo, no começo do séc. XX: o fragmento, género literário por excelência. Como escreveu Simón Marchán Fiz (La estética en la cultura moderna, Barcelona, Gustavo Gili, 1982, p. 115): "cada fragmento é um resumo [...], uma pincelada rápida, fechada segundo a sua forma, ainda que não nos seus temas". Cada fragmento combina-se com outros, anteriores e posteriores, formando um sistema e quebrando o discurso linear.
Não quero falar dos weblogs que não gosto ou não conheço, mas apenas daqueles onde encontro afinidades ou onde aprendo alguma coisa. Um deles é Nocturno com gatos, uma mistura equilibrada entre poemas próprios da autora do weblog, Soledade Santos, fragmentos de poemas escolhidos de autores que ela gosta e imagens. Seleccionei um dos poemas de Soledade Santos, intitulado "A chuva voltou": "a chuva voltou esta noite/no lamento do vento nos vidros/nos meus olhos a chuva voltou/é tudo quanto soa/e sabe bem ouvi-la/ter um pretexto/para o silêncio dizer apenas/ouve como canta nas telhas/e desagua/no pó".
A ternura do weblog - no sentido positivo do termo - é o modo como reagem os leitores (ou admiradores) de Soledade Santos, através de comentários, a que a autora costuma responder. De certo modo, este círculo de apresentação de poemas ou imagens lembra as cartas do séc. XVIII e o salão de Mme. d'Épinay, como Jürgen Habermas nos descreve no seu conhecidíssimo texto Mudança estrutural da esfera pública. A carta era tida como informação para os jornais, mas também como correspondência culta e de cortesia familiar. Mme. de Staël, cultivando uma intensa vida social, pedia aos seus convivas que, após as refeições que servia, se retirassem para escrever cartas uns aos outros sobre o que tinham observado ou comentado. No salão da acima referida Mme. d'Épinay, onde se celebravam a arte e a literatura, eram frequentes as primeiras audições musicais e as primeiras leituras de novos poemas. Ao mesmo tempo, fomentava-se a profissão de crítico ou "árbitro das artes" (Habermas, p. 57).
Porém, estamos numa época onde este processo já não é presencial, mas virtual. Pode aqui aplicar-se o conceito de comunidade imaginada, elaborado por Benedict Anderson (Imagined communities, Londres e Nova Iorque, Verso, edição consultada de 1991). A propósito da nação, escreveria o autor que aquela é imaginada porque "mesmo os membros de uma pequena nação não conhecerão a maior parte dos seus concidadãos, encontrá-los-ão ou ouvirão falar deles" (p. 5). Na realidade, mesmo comunidades maiores que uma aldeia terão essa dificuldade dos seus membros se conhecerem todos em termos de comunicação interpessoal. Assim, conclui Anderson, as comunidades distinguem-se não pela sua falsidade ou aspectos genuínos mas pelo estilo com que são imaginadas. Uma comunidade, mesmo que os seus agentes não tenham conhecimento da sua totalidade, mostra um lado de fraternidade - ou de identidade e aproximação, acrescento eu.
Um weblog como o de Soledade Santos tem tal particularidade. Talvez nunca chegue a conhecer Soledade Santos, e se o seu nome é verdadeiro ou um pseudónimo. Também não sei se o auditório que a acompanha a conhece ou não. Mas todos - para além da interactividade presente nestas comunidades imaginadas - partilham gostos, objectivos ou simples formas de estar na vida. São comunidades virtuais, mas mais além do chat onde cada um coloca a sua mensagem e interage com outros comunicadores sem que a falta de identificação constitua qualquer problema para o contacto. Aqui, as pessoas dão o nome e a autora reage, com respostas, quase sempre de agradecimento. Como se Mme. de Staël ressuscitasse e mandasse alguém escrever para os outros comentarem.
Outro weblog de referência é A montanha mágica, uma bela combinação de artes visuais e literárias. Nas mensagens de sábado, dia 17, inclui, por exemplo, reproduções da pintora surrealista menos bem conhecida Remedios Varo, nascida em Espanha e falecida no México. Para além de um pressentido lado narcisista (apesar da timidez de quem se esconde por detrás do nome de Luís), há neste weblog uma grande preocupação estética e pedagógica, uma fruição e um enorme elogio à produção artística humana. Acompanha-se o weblog como se folheássemos um álbum que admiramos - ou amamos.
Aqui, levanta-se a questão da edição. Será difícil editar um livro com as imagens surgidas no weblog - pelo preço, pelo tempo de impressão e pela colocação no mercado (da concepção à produção, distribuição e consumo, isto é, toda a cadeia de valor). Além disso, haveria direitos de autor a pagar. Pela tradição da Internet, o link funciona como indicação da fonte, o que isenta de qualquer pagamento por parte do autor da página ou do weblog. E A montanha mágica faz isso com sabedoria. Quanto à Janela indiscreta, outro blog de culto, prometo escrever sobre ele, um dia destes.
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