sábado, 10 de abril de 2004

ANIMAÇÃO - DOIS PERCURSOS, DUAS PERSPECTIVAS

Lorenzo Mattotti deixou a Itália para se fixar em França, pois a banda desenhada é mais bem acarinhada aqui. Sylvian Chomet trocou a França pelo Canadá, onde encontrou mais possibilidades de fazer cinema de animação. A França como terra de acolhimento e ponto de partida. Por detrás destas mudanças, as minhas leituras de Caboto, do primeiro, e de Les triplettes de Beleville. Ou seja, dois percursos curiosos.

Caboto

Giovanni Caboto (Génova?, cerca de 1450-1498) e seu filho Sebastian Caboto (Veneza, cerca de 1476-Londres, 1557) foram navegantes e exploradores dos mares. O pai queria percorrer o Oriente para estabelecer laços comerciais. Em 1490 passou por Bristol, na Inglaterra, colocando-se ao serviço do rei Henrique VII, que lhe outorgou uma carta com monopólio comercial, para realizar essa expedição. Embarcou no navio Matthew e fez de seu filho Sebastian um dos tripulantes. Em 1497, chegou à ilha do Cabo Bretón, passando também pela Terra Nova, Saint-Pierre e Miquelon. No ano seguinte, empreendeu uma nova viagem, que o conduziu até à costa oriental de Groenlândia e a península do Labrador, embora pareça ter sido o seu filho Sebastian que a dirigiu.

Mais tarde, Sebastian pôs-se ao serviço do imperador Carlos I e alcançou o estuário do rio da Plata e subiu até ao Paraná. Tornou-se, então, piloto maior da Casa de Contratación, o equivalente à Casa da Índia portuguesa. A operação não correu bem e ele ficou quatro anos desterrado. No ano de 1549, novamente ao serviço da Inglaterra, organizou a expedição de Willoughby e Chancellor para encontrar o caminho para nordeste, começo das trocas comerciais com a Rússia. Mau grado toda a insuficiência de conhecimento, sabe-se que foi um famoso cartógrafo de Henrique VII e piloto-maior de Carlos I. A ele deve-se o traçado de um importante planisfério, que se conserva na Biblioteca Nacional de Paris.

É sobre Sebastian Caboto que Lorenzo Mattotti e Jorge Zentner escreveram um álbum, inicialmente publicado em 1993 pela Albin Michel e reeditado pela Casterman, em 2003. Zentner, nascido na Argentina, procura descrever a personagem de Sebastian Caboto. Este seria um simples comerciante, um cartógrafo rigoroso, um astrónomo ou um aventureiro à procura de um novo mundo?

A verdade é que se trata de um homem de ciência que decide tomar a liderança numa expedição ao continente sul-americano. A sua sede de conhecimento por descobrir novas terras para além das fronteiras conhecidas determina o seu destino. À procura de riquezas (prata), encontra-se com indígenas e transmite o seu humanismo. Mas por quanto tempo adia o choque violento de duas civilizações muito diferentes?

O desenho de Mattotti convida à viagem, que se iniciou em Sevilha, em 1525. As cores estão longe do padrão convencional da banda desenhada europeia. As legendas de Zentner são reduzidas, permitindo olhar com maior atenção para os desenhos de Mattotti, mas também acompanhar um cenário cheio de mistério e desconhecido, equivalente à ignorância dos traços da viagem de Caboto.

As imagens de Mattotti mostram-nos um feérico jogo de luzes e sombras, como se já se vivesse (ou ainda se vivesse) no barroco, com aproximações sucessivas de rostos, lembrando um zoom de máquina fotográfica, e ensaiando perspectivas do rosto de Caboto, procurando aproximar-se do que terá sido o navegador. No álbum, as cores quentes de pastel de Mattotti distinguem-se do colorido simples e variado de outras obras, lembrando Sonia Delaunay, ou o traçado das figuras que nos remetem para Léger.

Belleville

Uma avó, um neto ciclista e um cão, vivendo algures numa casa torreão, isolada primeiro e junto à linha ferroviária depois, dão-nos os adereços iniciais do filme. Os bonecos nem são assim tão bonitos como se gosta de ver no ecrã, mas são personagens cativantes nas suas atitudes simples, anti-heróicas sempre.

Lembro-me da velha avó puxar os óculos para cima ou para mais perto dos olhos, que quem usa óculos costuma fazer. Ou o do aproveitamento do sapato mais alto que ela usa, para reduzir uma diferença de altura da perna. O sapato alto serve para fazer fintas ou rasteiras: quando um dos automóveis dos bandidos se aproxima, ela faz uma banal rasteira ao carro e este derrapa e acaba por se espantar.

Há imaginários que estão bem patentes no filme. O peso dos Tours (a volta a França em bicicleta), a presença massiva da imagem face aos diálogos (ao contrário dos filmes americanos fala-baratos, como disse o realizador numa entrevista) mas o emprego de uma banda sonora de muita qualidade, através da memória americana da música dos anos 30 mas não só, a distinção dos bons e dos maus, estes uns feios homens quadrados, um quotidiano feito de pequenos gestos e hábitos. O que me prendeu a atenção foi o uso dos electrodomésticos, não para esse uso mas para instrumentos musicais das manas.

O que aproxima Sylvian Chomet de Lorenzo Mattotti? Apenas o uso do pincel e do lápis. O filme de Chomet é de duas dimensões, ainda não derrotado pelo digital dos computadores (apesar da animação de 3D pontuar aqui e ali o filme). Chomet acha que não tem orçamentos para uma produção equivalente às da Pixar, Dreamcast ou Disney; opta, pois, por um batalhão de desenhadores.

Ora, enquanto que Mattotti faz um ensaio de História, Chomet descreve as estórias do dia-a-dia. Se naquele há um autor, embora se não saibam todos os pormenores, neste há anti-heróis (a avó, o ciclista falhado e recolhido pelo cão vassoura, o cão gordurento mas hábil, as manas já decrépitas angariando rãs para o jantar). Se em Mattotti, apesar de não sabermos o percurso, há uma previsão, em Chomet as personagens são trabalhadas nos pormenores mais ínfimos, resultando uma grande simpatia por elas.

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