PROGRAMAS DE HUMOR NA RÁDIO
Ouvi ontem o compacto [textos de toda a semana] do programa de humor da Palmilha Dentada, que passa diariamente na Antena 1, antes do noticiário das oito da manhã. Não escutava o programa desde 7 de Janeiro último, quando aqui critiquei o humor dos teatreiros do Porto (Ivo Bastos e Rodrigo Santos). Sem pretender dizer que me reconciliei com o humor do Enigma da Palmilha Dentada, "a primeira rádio-novela com Aloe Vera", reconheço que personagens como a dupla do General e do Cortês estão muito bem trabalhadas. E também a dupla Emilinha e La Salette, caso do diálogo desta semana sobre a fuga de cérebros, referindo-se à intenção ministerial de cativar o regresso ao país de investigadores portugueses (desde que tenham escrito cem artigos em revistas internacionais).
No programa, encontram-se tipos característicos de "non-sense", ou disparate, misturando o género do indivíduo esclarecido ou que se julga esperto em oposição à ingenuidade de outras figuras face ao que acontece no dia-a-dia. Tal construção de diálogos também foi possível encontrar no programa de humor anterior na Antena 1, A Conversa da Treta (António Feio e José Pedro Gomes), embora aqui eu detectasse um humor mais fechado, identificando tipos de pessoas de um meio urbano popular, desenrascados e finórios (ou procurando aparentá-lo).
A Voz dos Ridículos
Claro que o ideal seria traçar uma genealogia do humor radiofónico português. Mas este não é o espaço para um trabalho de tal teor nem a investigação está feita. E seria importante perceber também a relação do humor entre os vários media: hoje na televisão e na rádio (casos de Herman José, os citados António Feio e José Pedro Gomes e o mais recente caso de Nuno Markl); ontem, nos jornais e na rádio (O Senhor Doutor, de Henrique Samorano e de José de Oliveira Cosme, e os diálogos de Olavo d'Eça Leal na Emissora Nacional). Cada meio de comunicação tem características próprias, resultando uma estética específica. Num livro magnífico, Fernando Curado Ribeiro (Rádio-produção-realização-estética, de 1964) tecia comentários interessantes sobre essa estética radiofónica.
Isto vem também a propósito de A Voz dos Ridículos, programa de humor emitido a partir do Porto e que passou 59 anos desde a sua fundação, conforme lembrou anteontem o jornal O Primeiro de Janeiro (texto de Zulmiro Raimundo) e os bloguistas portuenses de rádio aludiram de imediato. Frise-se que Zulmiro Raimundo é colaborador actual do programa e filho de um dos fundadores do mesmo, o que lhe confere respeitabilidade. Sem rebuscar muito nas minhas memórias, e sem procurar desequilibrar o peso dos vários autores, destaco João Manuel, Bê Veludo e Mena Matos. Apesar de tudo, a notícia - cujo tema não mereceu tratamento nos considerados jornais de referência, como Público e Diário de Notícias, o que ilustra a tese da centralidade da capital e da periferia do resto do país - assinalou o aniversário mas não se deteve na análise das personagens e o contexto social, histórico e cultural do programa.
Emissão iniciada em 1945, no Portuense Rádio Clube, passaria por outras rádios [que hoje designaríamos por locais] como a Ideal Rádio (dentro dos Emissores Norte Reunidos), Rádio Comercial Norte e Rádio Festival, onde continua. Sendo uma espécie de porta-voz do jornal humorístico com o mesmo nome (Matos Maia, Telefonia, Círculo dos Leitores, 1995, página 162), no programa sempre se destacaram retratos e estórias de indivíduos e famílias dos bairros mais populares daquela cidade. Para além dessa análise ao quotidiano também feita pelos Parodiantes de Lisboa, nascidos em 1947 e transmitidos nas estações desta cidade, os Ridículos sempre combinaram diálogos com música, onde o acerto vocal era menos importante do que o destaque das situações. As letras eram originais, dizendo respeito a tais situações, mas as músicas eram populares, logo já conhecidas do auditório do programa. Durante muitos anos, A Voz dos Ridículos animou muitos espectáculos, tendo como fins beneficientes, isto é, fazer receitas para apoiar obras sociais. Para completar, Matos Maia, no livro que citei acima, faz alusão aos cortes da censura aos textos dos Ridículos, o que não deixa de ser curioso. É que, mesmo a brincar, se dizem coisas sérias.
O dispositivo radiofónico
Sem querer estabelecer filiações profundas, considero que a Palmilha Dentada bebe bastante desse humor portuense dos Ridículos, ao passo que a dupla da Conversa da Treta recebeu identidade de personagens dos Parodiantes de Lisboa, talvez a marcar as idiossincrasias colectivas das duas cidades de onde provêm os humoristas ou teatreiros.
De qualquer forma, nota-se a montagem de um dispositivo simples - o que sabe um pouco de uma coisa e o que ignora ou confunde tudo sobre essa coisa, o que ensina e o que é ensinado, o mais atinado e o mais "espalha-brasas", o mais urbano e o mais popular. Isso vem do tempo de O Senhor Doutor e do Menino Tonecas (que nasceu nos jornais, transitou para a rádio e, mais recentemente, para a televisão). O humor residia nos trocadilhos mas procurando ensinar. Dito de outra maneira - aprender a partir do humor, género: "Professor: D. Afonso Henriques, desejoso do poder, com o auxílio de D. Paio, arcebispo de Braga, e de balsão desfraldado na Batalha de S. Mamede, derrotou as hostes da sua mãe, Dona Teresa... Vamos! Repita lá isto... Aluno: D. Afonso Henriques, desejoso de comer, atirou-se ao paio do arcebispo de Braga, e com o calção rasgado na Travessa de S. Mamede papou as hóstias da mãe da Teresa" (livro de Matos Maia, p. 77).
O humor combina-se, assim, com educação e reflexão. Mas sem esquecer códigos morais implícitos. Há, no escasso tempo de cada emissão, um traço pictórico impressionista, que caracteriza um dado grupo social. Em O Senhor Doutor vivia-se o esforço da escolarização obrigatória, A Voz dos Ridículos e Os Parodiantes de Lisboa retratam as figuras e tipos populares das cidades de onde emitem, ao passo que a Palmilha Dentada já não reflecte a busca do verismo dos programas anteriores, mas antes uma filosofia de desconstrução. Em que a sátira e o riso estão sempre presentes, como também observamos nos velhos jornais e publicações de Rafael Bordalo Pinheiro, nos finais do século XIX (o burlesco das figuras públicas), e redescobrimos no cinema dos anos de 1930 e 1940, com os seus tipos populares (o desenrascado, o desastrado, a menina que pretende casar, o pinga-amores, os com dotes escondidos ou sublimados e que se revelam eficazes para o sucesso futuro).
Claro que, como escrevo no começo da mensagem, o ideal será estudar longitudinalmente, ao longo do tempo, as personagens criadas nos programas de humor radiofónico, analisar a sua evolução, entrada e saída, em suma, as diversas narrativas em jogo. E ver a importância dos sons - em separadores, jingles, vozes.
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