AS GRANDES TRÁGICAS DO SILÊNCIO
Foi com este título que António Ferro realizou uma conferência sobre o cinema, a primeira no nosso país. Estávamos a 1 de Junho de 1917, tinha o autor apenas 21 anos. Por falta de oportunidade, não li o original, mas socorro-me do livro de António Rodrigues (António Ferro, Na idade do Jazz-Band) para ultrapassar essa dificuldade.
Era o começo do cinema, uma das maiores indústrias culturais do século XX. A conferência daquele que, depois, criou a "política de Espírito" e a colocou ao serviço do regime ditatorial salazarista, terá sido uma "notável e brilhante conferência sobre o cinema e uma das principais manifestações culturais no quadro da modernidade portuguesa desta década" (Rodrigues, 1995: 22). A conferência propriamente dita foi dividida em três partes: o elogio da frase, do animatógrafo e das princesas do ecrã. Vivia-se o cinema como a adequação a um universo civilizacional de referência, pois o cinema "tem a vantagem de apurar, notavelmente, o sentido estético, de ser uma escola de bom gosto, como conheço poucas". Escreve Rodrigues que havia em António Ferro uma preocupação pelo décor do espaço e do corpo que o habita e, também, pela entrada purificadora nesse espaço imaginário percorrido por heróis e heroínas (p. 24). O ecrã revelava-se a matéria-prima do imaginário.
As estrelas emergentes desse cinema ainda mudo eram italianas, uma delas dando pelo nome de Francesca Bertini. Mas Ferro estava precavido: ela, "na vida é muda como no cinema, é menos bela do que no ecrã. Em conclusão, a Francesca Bertini da Avenida Nomentana é o manequim da Francesca Bertini do cinema. Não existe, portanto: é uma projecção". Projecção, porque "gerada certamente no ventre da objectiva". Vivia-se um tempo febril: automóveis, comboios, aviões, imagens em movimento. Com as princesas do ecrã a entrarem dentro da vida do espectador e a estabelecerem relações novas entre o real e o virtual, de que nós hoje temos mais consciência - embora reajamos da mesma forma ingénua e romântica.
Ora, do conjunto mais apreciado de estrelas do mudo, se Francesca Bertini era a romântica, Pina Menichelli era a vampe e Lyda Borelli era a divina, como hoje olhamos Charlize Theron ou Scarlett Johansson. Tínhamos aí os estereótipos principais, que têm alimentado a narrativa do cinema. Claro que Lyda era a preferida de Ferro, "pela sua estilização super-requintada". Pegando no que António Rodrigues escreve: "As grandes trágicas do silêncio são um dos mais belos elogios que o cinema então podia receber, tanto pelo entendimento da sua natureza estética e onírica próprias, quanto pela consciente valorização da sua eficácia socio-imagística" (p. 26).
Livro: António Rodrigues (1995). António Ferro, na idade do Jazz-Band. Lisboa: Livros Horizonte
INDÚSTRIAS DE CONTEÚDOS
Publica o número mais recente da revista Economia Pura (nº 63, Março de 2004), dirigida por Francisco Botelho, um dossier dedicado às indústrias de conteúdo, em especial um estudo de Artur Castro Neves. Daí considerar importante traçar umas breves notas sobre o dossier.
Parte-se do princípio que a criação de riqueza se está a deslocar da actividade produtiva para a concepção, tendo a inovação como principal esteio na criação de valor. Para João Abel de Freitas, que apresenta o dossier, "os novos modelos económicos tendem a estruturar-se segundo dois grandes eixos: os serviços integradores e as indústrias de conteúdos". E esclarece o mesmo autor, até há pouco director do GEPE (Gabinete de Estudos e Prospectiva Económica do ministério da Economia), que as indústrias de conteúdos são um "conjunto de actividades que, em sentido lato, se posicionam no centro dos universos do conhecimento, da cultura e do entretenimento/lazer".
Definição de indústria em Artur Castro Neves
Sociólogo pela Sorbonne, Paris V, e responsável pela cadeira de Economia do Audiovisual do curso de Cinema da Universidade Moderna, Artur Castro Neves define indústria como um "sistema de fabricação e de exploração comercial dos produtos, cujos recursos são alocados e escoados, ou no mercado ou dentro da instituição proprietária do referido sistema de fabricação". Esta definição permite-lhe avançar para a expressão indústria cinematográfica enquanto sistema de fabricação de filmes.
Ora, quais são os principais recursos para produzir um filme, pergunta Artur Castro Neves? Ele considera os talentos criativo, artístico, técnico (e capacidade tecnológica) comercial e directivo. E define, em termos de exploração comercial dos filmes produzidos, as principais plataformas de distribuição e difusão: circuitos de cinema, televisões generalistas e temáticas, gratuitas ou de acesso pago, serviços em linha, como o telefone e a internet, e serviços fora de linha, como o vídeo e o CD.
Quanto à indústria de conteúdos, o mesmo autor considera os conteúdos como "serviços de comunicações electrónicas". Compara os conteúdos digitais e analógicos, com os primeiros a serem fabricados digitalmente ou poderem "resultar de uma tradução em linguagem binária de conteúdos analógicos e arquivados em suporte electrónico", e distingue a natureza diferente de conteúdos digitais e de conteúdos imateriais ou intangíveis. Finalmente, fala dos quatro tipos de operadores da indústria: operadores de telecomunicações, operadores de serviços electrónicos, produtores de conteúdos e editores e distribuidores de catálogos e programas.
O dossier contém ainda um conjunto de outros elementos, que reputo de grande importância para a compreensão daquilo que eu entendo por indústrias culturais (e de conteúdos, na expressão de Artur Castro Neves). A revista Economia Pura custa €3,75.
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