A INDÚSTRIA DAS TELENOVELAS NA AMÉRICA LATINA, SEGUNDO NORA MAZZIOTTI (1996)
Nora Mazziotti estuda em especial as telenovelas argentinas no começo dos anos 1990, relativamente fora do mainstream das novelas brasileiras da Rede Globo de Televisão (pelo menos para nós portugueses). Para Mazziotti, importa realçar as heroínas como dispositivos da indústria cultural (capítulo 8, pp. 141-165], atendendo a que a grande característica do melodrama - que é a telenovela, ou culebrón como se diz em castelhano - é produzir emoção, o que não acontecia com as telenovelas de começos de 1990.
A autora, docente de Ciências da Comunicação da Universidade de Buenos Aires, distingue dois modelos principais na fórmula da telenovela. O primeiro é o das novelas de produtor. São super-produções que se destacam pelo cuidado técnico, a grandeza dos cenários, a incorporação de elencos numerosos, a espectacularidade do vestuário, uma grande quantidade de exteriores. O segundo conjunto é o modelo de telenovelas de actriz, porque estas sobressaem e porque acompanham os objectivos da protagonista em fazer carreira. Enquanto o primeiro modelo assenta na inovação, no segundo não há: as diferenças entre telenovelas são variações na estrutura narrativa e incorporação de temáticas próprias da agenda jornalística ou ritmos de narrativa correspondentes a outros géneros.
A autora elenca, contudo, um terceiro modelo, o das telenovelas da época, relatos que representam o passado e o tematizam. Nestas, o tratamento do passado não é a busca da verosimilhança das etapas históricas abordadas. Não se pretende que a ficção histórica seja fiel na representação dos factos narrados. As telenovelas podem produzir a sua versão da história com igual liberdade que qualquer outro produto ficcional, como na literatura ou no cinema. Ainda sobre as telenovelas de época, Mazziotti considera que as fontes que alimentam estes produtos não estão no passado histórico mas nas imposições dos sócios estrangeiros, que controlam a produção, caso do cinema americano. Estas imposições tornam-se evidentes na criação de personagens como na do clima de uma época, que procuram dar um glamour de Hollywood.
Sobre as heroínas e os galãs
Mazziotti descreve as heroínas progressistas que surgem em algumas telenovelas, ou a invenção do feminismo. São heroínas que se opõem às normas sociais e se aventuram em âmbitos vedados anteriormente à mulher. Qualquer que seja a profissão exercida, estão orientadas para a esfera pública. São heroínas que se afastam dos estereótipos do “feminismo” construído pelo melodrama, o da protagonista doce, sofrida, dócil. O novo comportamento radica no discurso verbal combativo e no estilo assumido pela atitude progressista face a questões sociais. A proposta de figuras femininas fortes pode resultar atraente, mas, diz Mazziotti, a luta pelos direitos das mulheres que desempenham estes papéis pouco tem a ver com os discursos das mulheres das épocas retratadas. Estes papéis acabaram sendo construídos por filmes, séries, mini-séries e telenovelas estrangeiras, com discursos audiovisuais e literários que enformam a “história mediática”. O recurso ao cinema apenas corresponde ao tratamento cinematográfico, de vestuário, e desaparece na zona em que devia ter sido construída com maior rigor: o desenvolvimento de personagens. As heroínas conseguem ultrapassar as dificuldades, mas a sua rebeldia é uma atitude verbal: não corresponde à totalidade das suas acções nem ao desenvolvimento da trama. São declarações feministas não incorporadas na história, nem implicam uma transformação cabal do papel tradicional da heroína.
No conjunto das telenovelas argentinas, Mazziotti analisa Celeste, onde se salientou a incorporação da sida, uma temática própria dos anos 1990. Inclusive, apresentavam-se uma jornalista e um doente de sida verdadeiros junto à personagem doente. Era a televisão dentro da televisão. A inclusão da sida no guião representou uma marca tão forte que a opinião pública argentina a ela se referiu em notas, entrevistas e comentários sobre as telenovelas. Claro que os motivos sociais caracterizaram sempre o melodrama, a sua permanente denúncia, e o que fazem o guionista e a sua equipa é aggiornar a temática e não incorporá-la. Por outro lado, a relação heroína/vilã tornou-se mais complexa ao incorporar, para além das polaridades morais do melodrama, densidades psicológicas.
Noutras telenovelas analisadas pela autora – e que também não vimos em Portugal –, construía-se um novo tipo de heroína feminista: com independência económica e de pensamento, com incursões no mundo do trabalho e com tomada de atitudes. Na construção do novo estereótipo, permite-se à heroína a sedução, um recurso tradicionalmente usado pela vilã. Ao invés, o galã surge mais sensível, mais vulnerável e disponível a enamorar-se. Com o avanço da heroína em papéis activos, em situações de humor, na sua responsabilidade de urdir a trama ou verbalizar frases de um “feminismo” agressivo, perde-se o clima romântico ou sentimental que caracterizou a telenovela em grande medida.
[continua]
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