TELENOVELAS E PROGRAMAÇÃO – O QUE ALTEROU COM O FORMATO VINDO DO BRASIL [Texto inicialmente publicado na revista MediaXXI, nº 74, de Fevereiro/Março de 2004. Continuação da mensagem de ontem]
Entretanto, assistira-se a um novo estilo de televisão protagonizado pelos directores dos canais (Emídio Rangel, José Eduardo Moniz), com SIC e TVI a disputarem as audiências no final dos anos 1990. A TVI alargava o seu prime-time, com o noticiário a funcionar como âncora de programas, caso das telenovelas e do Big Brother, reality-show da Endemol, que se distinguiu por possuir um fio narrativo, em que os concorrentes representavam como se fossem actores e actrizes, embora sem qualquer formação, como escreveu a antropóloga Alexandra Laranjeira (Mediatização da vida privada, 2003). O Big Brother foi cunhado de “novela da vida real” ou novela do “povo soberano”. Eduardo Cintra Torres, responsável por esta última designação (Reality shows, ritos de passagem da sociedade do espectáculo, 2002), descreveu o Big Brother como o programa das self-made stars, apenas com nome próprio, triunfo do cidadão comum sobre as estrelas do cinema ou das elites sociais e culturais.
O noticiário da noite da TVI deixava de ter horário rigoroso, oscilando o seu começo vários minutos antes das 20 horas. A mesma estação apostaria na produção de ficção portuguesa (novelas, séries e reality-shows), anulando a hegemonia da programação da SIC baseada em telenovelas do Brasil. Como diz Isabel Ferin no seu estudo, a estratégia de lançamento do Big Brother (Setembro de 2000) assentou em infotainment, com o noticiário a servir de suporte de informação leve sobre o programa, e product placement, com referência a produtos comerciais de grande consumo. E, se o Big Brother funcionou como motor de crescimento da TVI, outros programas ajudaram, como séries (Jardins proibidos, Super pai) e telenovelas (Olhos de água, Anjo selvagem e Filhos do mar), sempre acompanhados por publicidade em meios estáticos (mupies e outdoors) e dinâmicos (autocarros). A SIC começaria a recuperar a liderança de audiências a partir do programa Masterplan, outro reality-show ficcionado, chegando ao final de 2003 com vantagem sobre a TVI, logo seguida pela RTP1. Embora diferente no enredo face ao Big Brother, o Masterplan, também da produtora Endemol, permitia aos concorrentes continuarem a participar no programa mesmo após a expulsão. E se o Big Brother deu a conhecer o dócil e simplista Zé Maria, o Masterplan mostrou-nos uma Gisela ávida de publicidade em entrevistas não controladas pela organização.
Uma análise das telenovelas implica também o estudo das audiências, como fez Verónica Policarpo na sua tese de mestrado, ainda inédita (Telenovela brasileira: apropriação, género e trajectória familiar, 2001). Para esta professora da Universidade Católica, uma telenovela é um produto ou formato de indústria cultural dotado de uma narrativa dramatizada e marcas próprias em termos de duração e estrutura (série). Ela procurou saber como é que as pessoas “lêem” as propostas da telenovela, quais os significados a ela atribuídos e que factores sociais entram para essa apropriação. Analisando a telenovela Terra Nostra (2000) e o seu impacto na recepção, partiu da hipótese que as formas de apropriação da telenovela brasileira variam em função do género e da trajectória familiar. Para tal, considerou a audiência como social (composta por indivíduos inseridos em complexas relações sociais) e activa (explicação para as diferenças de recepção, com possibilidade de leituras de resistência ou usos alternativos que as mulheres fazem das telenovelas). A telenovela, explicaria, constitui um interlocutor privilegiado de certo tipo de sentimentos e experiências. Por exemplo, ao verem a telenovela, as mulheres podem avaliar a sua vida e reflectir a sua situação, numa proximidade de identidade entre ficção e vida pessoal dos receptores.
Com a sua introdução no imaginário das indústrias culturais de finais do séc. XX, e género televisivo habitualmente considerado com orientado para audiências femininas, a telenovela ganhou relevo também na produção nacional. No seu trabalho, Isabel Ferin destacou os investimentos no domínio das técnicas e nas performances dos profissionais, faltando, contudo, a densidade antropológica e sociológica das personagens construídas pelas telenovelas brasileiras. No cômputo geral, a programação de telenovelas, primeiro brasileiras e depois portuguesas, esteve na origem da fixação de audiências dos canais televisivos, percorrendo sucessivamente a RTP, a SIC e a TVI, prova da popularidade do género. Mas, por outro lado, surgia um movimento de oposição ou complementaridade às telenovelas, dando-se importância aos reality-shows. Conquanto parecessem resultar de cenas não representadas ou, na linguagem dos repórteres, não editadas, a produção criou um roteiro de enredo, com picos de interesse, para prender a atenção do telespectador, como se fosse uma telenovela. Antes, com anúncio no interior do noticiário, durante a transmissão em compacto (os chamados melhores momentos do dia) e depois (comentários e entrevistas a antigos residentes da casa, no exemplo do Big Brother). E com custos mais baixos, sem pagamento de cachet a artistas famosos ou recurso a montagem de cenários, criação de guarda-roupa ou necessidade de dezenas ou centenas de figurantes.
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