terça-feira, 14 de setembro de 2004

CARTOON DE ANTÓNIO

antonio.JPGO cartoon de António na última edição do Expresso merece uma interpretação semiótica. Confesso que hesitei bastante em abordar o tema, dada a sua grande sensibilidade e susceptibilidade temática. O blogue tem uma linha editorial de análise das indústrias culturais em Portugal e em sentido geográfico mais amplo e não procura efeitos fáceis nos posts aqui colocados. Em pano de fundo, a recente vinda a Portugal de um barco holandês que se propunha discutir a questão do aborto e a tomada de decisão do ministro da Defesa e do Mar no sentido da proibição da sua atracagem num porto nacional, que o cartoonista António trabalha.

O que me interessa é ler o cartoon no seu todo, munido das ferramentas da semiótica. No sentido denotativo, vê-se um marinheiro (cujos traços ampliam e exageram os elementos fisionómicos do ministro) a bordo do navio, referente este que nos remete para o assunto. O barco tem um conjunto de canhoneiras, que o identifica como sendo de guerra, o ministro aparece vestido de marinheiro e, por detrás de si, está a representação dos mastros em forma de cruz de Cristo (material que aparenta ser em madeira). Estamos já no domínio do sentido conotativo. Cada um destes elementos assume-se como parcela da realidade apresentada mas aponta para um segundo sentido. A legenda faz concordância com a conotação.

Há, contudo, um outro sentido conotativo, quiçá ainda mais importante. Querelle [que facilmente podemos traduzir por querela, disputa] aponta para um obra de Jean Genet, escrita por ele em 1947, Querelle de Brest. De que trata a obra? Da história de um marinheiro amoral e assassino, Querelle, que proclamava: "A minha mulher é o mar; a minha amante é o meu capitão".

Genet (1910-1986) foi abandonado pelos pais e passou muito tempo da sua juventude numa instituição para delinquentes juvenis. No período antes da Segunda Guerra Mundial vagueou por vários países europeus como ladrão e prostituto. Em 1943, seria preso por roubo, altura em que começou a escrever. Os seus personagens mostravam o mundo que ele conhecia: homossexuais, ladrões, prostitutas e párias de toda a espécie. Depois, seria preso vários vezes até que apanhou uma pena para toda a vida em 1948. Talvez porque fosse um período pós-guerra, de apaziguamento social, talvez porque os seus textos chamassem a atenção para um bas-fond que urgia solucionar socialmente, o certo é que escritores de nomeada, como Jean-Paul Sartre, André Gide e Jean Cocteau, assinaram uma petição para a sua libertação. A autobiografia de Genet apareceria no ano seguinte, O diário do ladrão.

Em 1982, o realizador alemão Rainer Werner Fassbinder faria um filme baseado na obra de Genet, Querelle de Brest, que nem os fãs do cineasta gostaram. Fassbinder faleceria pouco depois. E o que é o filme nos mostra? Ambientes sórdidos, paisagens artificiais onde os valores e os bons costumes desapareceram. Creio que subsistia no filme tão somente a solidariedade entre párias, um código de honra entre pares.

A importância dos cartoons

Eu aprecio muito a indústria cultural dos cartoons e banda desenhada. No jornal Público, por exemplo, posso ler o jornal a correr, mas delicio-me a ler os bonecos do Luís Afonso (o ano passado laureado com um prémio do Clube de Jornalistas). Ainda hoje, o seu "Bartoon" lembra a discussão desta semana em torno do Serviço Nacional de Saúde. Conversa o homem do bar com o seu cliente (ainda com a caneca cheia): "Esta história de as taxas moderadoras serem aplicadas de acordo com o rendimento dos utentes... levanta-me uma dúvida... quando formos ao hospital... levamos o cartão de saúde ou a declaração de IRS?". Num quadro económico de escrita visual dos seus bonecos, as mensagens de Afonso têm uma sabedoria que só um alentejano pode firmar.

Quando se folheia uma história da banda desenhada, vêm sempre em primeiro lugar os cartoonistas. Em Portugal, quantas histórias aos quadradinhos (quadrinhos, no Brasil) são trabalhadas por homens geniais? Lembro-me, a correr, de Rafael Bordalo Pinheiro, Cottinelli Telmo, Adolfo Simões Muller, Stuart Carvalhais, Carlos Botelho [como gostaria de escrever sobre ele aqui no blogue, em tendo tempo], cada qual com a sua estética, cores, formatos de balões, sempre de enorme criatividade. E os fanzines, como O Mosquito ou o Mundo de Aventuras. A descoberta recente de Mattiotti e das mangas japonesas despertou em mim memórias doces da infância e da minha juventude nos primeiros teens.

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