O CORPO DECORADO
SOBRE TATUAGENS, PIERCINGS E NOVAS FORMAS DE COMUNICAR
A história ocidental da tatuagem remonta às viagens de Cook, em 1769, aos mares do sul, no navio Endeavour. Escreveria ele: “homens e mulheres [do Taiti] pintam o corpo; na sua língua, diz-se tatou”. Ora, se a tatuagem das sociedades tradicionais repete formas ancestrais gravadas numa filiação, as marcas contemporâneas têm um objectivo de individualização e de estética, escreve David Le Breton em Sinais de identidade, editado este ano em português.
Em finais dos anos de 1960, Nova Iorque fora apanhada por uma vaga de grafittis nos muros dos bairros mais pobres, nas paredes e nas carruagens do metro, com assinaturas estilizadas, nomes, algarismos e grafismos, feitos pelos taggers. Depois, da pele da cidade passar-se-ia à pele do corpo. O movimento hippie contribuiria para a renovação da tatuagem: Lyle Tuttle, de San Francisco, tatuou Janis Joplin, Peter Fonda e Joan Baez, artistas muito populares então.
No Reino Unido, nesse período, a tatuagem continuava a ser privilégio de culturas marginais como a dos roqueiros, dos teddy boys (blusões negros) e dos mods (modern people) na Reino Unido. Os mods são os fãs dos Beatles, usam cabelos compridos, vestem-se segundo a moda. Os roqueiros estão na corrente iniciada por Elvis Presley, usam blusões negros, recorrem às tatuagens, circulam em motas.
[a primeira imagem é uma fotografia de Samuel Golay, da AP, saído no Público de 30 de Agosto último. Elaine Davidson é brasileira e vive em Edimburgo. Tem mais de 1900 piercings em todo o corpo. A segunda imagem foi retirada do nono volume da manga Nana].
Cultura punk e recuperação social e estética das marcas desta cultura
No final dos anos 1960, teddy boys e mods desaparecem, uns na corrente dos hippies, outros nos skinheads, estes últimos com uma encenação própria: cabelos cortados rentes, jeans, botas Doc Martens. Neles, tatuagens e piercings são correntes. A reapropriação espectacular da tatuagem nos anos 1970 dá-se ainda na cultura punk. A dissidência destes anuncia-se em músicos, como Lou Reed e os Velvet Underground, Patti Smith, Ramones. Iggy Pop escarifica o braço com vidro partido nos seus concertos, cospe sobre o público e insulta-o. No Reino Unido, a cultura punk enquadra a cólera e as frustrações da juventude inglesa confrontada com o desemprego, as dificuldades económicas e a reestruturação social de Thatcher. O termo punk significa porco, lixo. Ao peace and love dos hippies respondem com hate and war. Os Sex Pistols dar-lhe-ão legitimidade, rejeitando qualquer tipo de autoridade. Eles são praticamente proibidos de actuar no Reino Unido, proibidos de passar na televisão e na rádio. Por seu lado, as operárias das fábricas de discos recusavam-se a prensar os seus discos e fazer as capas e as lojas evitavam distribuir a sua música. Contudo, os Sex Pistols atingem o top do hit-parade em 1977.
O movimento punk é visto como uma dissidência corporal: cabelos penteados em crista de Moicanos com arestas triangulares mantidos com sprays, lacas, e pintados em cores vivas em verde, amarelo e cor-de-laranja. A roupa é usada e a roupa interior é vestida por cima das calças ou vestidas do avesso. Casacos de cabedal cravejados e coleiras de cão ao pescoço fazem parte da indumentária. Os sapatos têm conotação militar. As raparigas apresentam-se muito maquilhadas, com saias muito curtas e meias rasgadas ou calças de plástico. O piercing é o acessório que mais perturba nesta ruptura radical, com alfinetes de bebé e cavilhas colocados nos lábios.
Elementos de decoração corporal: 1) tatuagem (sinal gravado na pele através de injecção com matéria colorida na derme) [imagem: dragão, em fã do F. C. Porto], 2) piercing (furo na pele para colocar um objecto, anel, pequena barra), 3) escarificação (cicatriz trabalhada para desenhar um sinal em profundidade ou relevo na pele), 4) implantes, 5) peeling (retirar a superfície da pele), 6) cutting (inscrição de figuras geométricas ou em relevo).
Se a tatuagem e o piercing se associaram à dissidência nos anos 70 e 80, hoje são referências essenciais da juventude contemporânea, escreve ainda David Le Breton. O movimento punk dissolvera-se na vida quotidiana e entrara no circuito do consumo, com roupas e insígnias vendidas nas grandes lojas. Surgiam estilos mais light: new wave, gótico, grunge, techno. A tatuagem saía da clandestinidade e afastava-se da má imagem.
David Le Breton construiu o seu livro com base em documentação, observação pessoal, encontros informais e entrevistas a mais de 400 pessoas tatuadas, furadas ou escarificadas, resultado de um inquérito de dois anos conduzido na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Marc Bloch de Estrasburgo.
Leitura: David Le Breton (2004). Sinais de identidade. Tatuagens, piercings e outras marcas culturais. Lisboa: Miosótis
COBAIN E REED NA ANTENA 2
Foi à hora do pequeno-almoço, antes de eu pôr no ar a mensagem de hoje. Ouvi uma música de Kurt Cobain tocada por Lou Reed, apresentado como guitarrista [Lou Reed - uma das almas da banda dos Velvet Underground, acima referidos]. Não tenho nada contra a passagem de Lou Reed na Antena 2, mas fiquei admirado. Na realidade, é salutar quebrar fronteiras de vez em quando.
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