terça-feira, 9 de novembro de 2004

SOBRE OS CONSUMOS DE CULTURA E MEDIA

[tópicos da mensagem: blogue Seta Despedida, um olhar sobre o Porto, proposta de investigação sobre blogues]

Num texto que já abordei aqui, de David Gauntlett e Annette Hill, sobre os consumos familiares de televisão, o que ressaltei foi o modo como foi feito o trabalho empírico. Assente na análise de diários de telespectadoras(es), os autores desenvolveram uma interessante proposta. Nesta mensagem, procuro aplicar os princípios expostos nesse texto mas aplicando-os aos diários que são os blogues. Aqui, parto da ideia que os blogues são diários já disponibilizados e prontos para análise. A base é, assim, a de que os blogues são produtores de informação útil sobre a recepção dos media e os consumos de cultura.

À cabeça, dado o seu carácter duplamente informativo e pedagógico, destaco o blogue Jornalismo e Comunicação. Mas, em termos de cultura, artes e indústrias culturais, o mais interessante que a blogosfera portuguesa produziu foi a Janela Indiscreta, já aqui referenciado, iniciado em 3 de Fevereiro de 2003 (morte de João César Monteiro, e daí um culto do grupo de blogueiras/os ao cineasta) e terminado em 2 de Novembro de 2004 (reeleição de George W. Bush como presidente dos estados Unidos). O material deste blogue está pronto a ser estudado: há algum(a) estudante de mestrado que queira fazer uma tese sobre este tema?

Seta Despedida

Há um outro blogue, que tenho acompanhado de perto, a Seta Despedida, de Alexandra Barreto. Ela definiu-o como um espaço “sobre palavras, imagens e pessoas”, no seu post fundador, a 25 de Setembro de 2003, uma quinta-feira. Para a autora, “Uma seta despedida não volta ao arco. É a isto que começar sabe: a irreversibilidade. Todas as manhãs do mundo são sem regresso”. E, nesse dia de arranque do seu diário, ela escreveria ainda: “O cheiro do silêncio onde começo. Talvez este blogue seja uma espécie de luta contra o silêncio mas não contra o silêncio sobre aquilo que não é dizível. Eu às vezes calo e podia dizer”.

Ou ainda: “Não é só com arco que se lançam setas. Também se pode usar uma arma chamada zarabatana, que consiste num tubo comprido através do qual, para além de setas, se podem soprar pedrinhas, grãos, dardos” (10 de Junho de 2004). Noutra ocasião, anotaria: “Lá se foram os meus 15 minutos de fama. Reparo que deixei de receber dicas estilísticas e existenciais. Minha alma feminina e volúvel entristece. Mas para que é que as mulheres aprendem a ler e a escrever? Ficam com a mania que podem ter blogues e opiniões, e depois temos de protegê-las delas mesmas! Muito obrigada pelos dias mais emocionantes da minha existência virtual. Se tivesse adivinhado, teria tentado escrever sobre temas como política portuguesa, futebol, ou os vossos blogues. Ainda vou a tempo? Deixam-me continuar na blogosfera se eu falar do que vocês quiserem”? (27 de Novembro de 2003).

Do que Alexandra Barreto escreve? Sobre pessoas: “Num destes dias tive o prazer de conhecer pessoalmente duas pessoas do blogue Janela Indiscreta. Antes de isso acontecer, não estava 100% convencida que elas tivessem existência real ou que no nosso planeta ainda morassem pessoas assim. Tive de passar a acreditar um bocadinho mais no mundo desde que as conheci” (15 de Novembro de 2003).

Ou: “Ontem conheci a Ana. Querem saber o que fazem duas bloggers à solta no Porto num sábado de tarde? Vão almoçar, trocam histórias e recomendações literárias sobre gatos, descobrem coincidências inesperadas no percurso profissional, dão uma volta pela Rua Miguel Bombarda, visitam o Centro Português de Fotografia (galgando com esforço os degraus), avistam sob as arcadas de Miragaia uma figura misteriosa aparentemente em fuga de um álbum de Corto Maltese e a tentar chamar um gato, compram castanhas assadas, tomam chá no Guarany, e combinam um encontro no futuro, planeado com mais tempo e com mais bloggers” (24 de Outubro de 2004).

E ainda: “Lugares em que ter colocado uma bomba durante este fim-de-semana poderia ter reduzido drasticamente a blogosfera. Café do Cais, na Ribeira; Cão que Fuma, na Rua do Almada; Balleteatro Auditório, em Arca d’Água; - Labirinto, na Rua Nossa Senhora de Fátima; Feira do Livro do Porto. Blogues com elementos avistados nestes lugares: Janela Indiscreta; Torneiras de Freud; Tempo Dual; Little Black Spot; A Montanha Mágica; Umblogsobrekleist; Seta Despedida; Leitura Partilhada. Blogues com um elemento cuja casa estava a ser pintada e não foi avistado em lugar nenhum: Quartzo, Feldspato & Mica” (24 de Maio de 2004).

Sobre o Porto

Cidade de todas as notas de Alexandra Barreto: Porto. Mas também recordações de Praga e outros sítios, pois a autora gosta de viajar. O Porto tem um lado cosmopolita de cidade do norte da Europa: arquitectura granítica e escura, tempo de chuva e de nevoeiros, pessoas com tez pálida, influências célticas.

Para além das pessoas e da cidade, a blogueira observa profissões, como a dos alfarrabistas: “Geralmente, nos alfarrabistas aprecio mais as histórias escondidas do que aquelas que contam explicitamente os livros. As dedicatórias, os marcadores esquecidos, os sublinhados esbatidos, uma flor seca ou uma borboleta que ali se decidiu guardar. Às vezes olha-se para uma montra e sente-se uma espécie de fraternidade silenciosa entre os livros expostos. Percebe-se facilmente que pertenciam ao mesmo dono e partilharam a mesma estante ou estantes próximas. Adivinha-se que têm o mesmo cheiro. E é possível começar a traçar um retrato vago da pessoa que os escolheu ou coleccionou. Por mim, gostava muito de conhecer as histórias secretas dos proprietários desses livros vendidos em conjunto. Quem eram? Quantos anos tinham? Morreram? Não tinham filhos? Os herdeiros não gostavam de livros? Estavam arruinados e precisavam de dinheiro? Preparavam-se para deixar o país? Converteram-se a uma variante extrema de minimalismo? Ingressaram num mosteiro, renunciando a todos os bens terrenos que lhes eram queridos” (26 de Junho de 2004)?

Mas ela escreve ainda sobre blogues, literatura (talvez a maioria dos posts), televisão, cinema, teatro, natureza, festas religiosas e desportivas, feira do livro. Não reparei se escreve sobre artes plásticas, apesar de várias imagens em mensagens recentes.

Proposta de investigação sobre blogues

Ora, sem saber muito da vida pessoal (familiar e profissional) da autora de Seta Despedida, pelo blogue consegue-se traçar um percurso muito próximo da totalidade dos seus consumos culturais. Isto não merece ser estudado?

Ampliando a discussão: um estudo sobre blogues pode envolver:

1) a reconstituição de redes (de amigos, de encontros, de gostos),
2) a recolha de informações sobre a recepção de um determinado produto cultural num espaço geográfico,
3) a caracterização, a partir do conhecimento dos níveis etários e profissionais das(os) blogueiras(os), da elite cultural de uma cidade,
4) a reflexão sobre se, a partir da recepção/consumo, há uma apropriação-transformação-criação de tendências (tertúlias, revistas, influências sobre as linhas dominantes das indústrias culturais (cinema, televisão, livros, discos),
5) a cartografia da programação das entidades (exposições, representações, associações).

Sem comentários: