ÉVORA HÁ 70 ANOS
Gosto particularmente de ler biografias. Em regra, são leves e levam-nos a um outro tempo e gostos, permitindo perceber melhor os quadros de épocas já perdidas. Aprendi-as a ler há uns anos, a pensar em textos de história dos media, quer no campo da imprensa quer no da rádio, onde canalizei energias para o período de fins do séc. XIX até finais da década de 1930. Podem ter, contudo, um aspecto menos positivo: o ajuste de contas.
Sempre que encontro uma biografia, em especial se dedicada a uma localidade, precipito-me a comprar e a ler. Foi o que aconteceu com o livro de Maria Amélia Cutileiro Índias, intitulado Évora, ontem e hoje. Reflexões e memórias de uma inconformista, com quem me deparei ontem à noite, antes de ver um filme medíocre. E a capa do livro funcionou como elemento complementar de atracção, tal a beleza da fotografia.
O que me interessou no livro de Maria Amélia Cutileiro Índias foi o seu tempo de infância e juventude passados em Évora. Nascida em 1928 numa cidade de interior do país, no arranque de um novo regime político, o registo da depois professora universitária da Universidade de Évora impressiona pelos traços sociológicos e etnológicos dessa época já recuada, nomeadamente os lazeres. Começa logo no princípio do livro: "Numa época em que a televisão não chegara ainda a Portugal, em que os aparelhos de rádio eram poucos e caros e em que o cinema no Salão Central poucas vezes acontecia, as diversões da população eborense centravam-se nos bailes, nos teatros das colectividades ou, mais raramente, no teatro Garcia de Rezende, quando uma companhia de Lisboa se deslocava a Évora" (p. 22).
Telefonia e "assaltos" carnavalescos
A autora viu morrer o pai aos 10 anos. Se, até aí, havia um trem de vida desafogado em família de classe média, depois começariam as dificuldades. Estava-se em 1938. Escreve Maria Amélia Cutileiro Índias: "Um outro entretenimento que também escapou aos cortes orçamentais foi o rádio - a «telefonia sem fios» ou apenas «telefonia» como então se chamava. E, desde o teatro radiofónico muito apreciado pela mãezinha às transmissões dos espectáculos de ópera, que a Madina [irmã mais velha da autora] ficava a ouvir até tarde, passando pela música ligeira ou pelos serões da FNAT - designada actualmente por INATEL - que a todas agradavam, foram muitos os momentos de prazer que o aparelho de telefonia nos proporcionou" (p. 67). Anos mais à frente, em 1944, quando uma doença grave a obrigou quase a ficar isolada em casa, os consolos eram "a leitura, a audição da Emissora Nacional e do Rádio Clube Português, as estações que melhor se ouviam no nosso rádio, a escrita" (p. 93).
No Carnaval, havia os "assaltos" em casas particulares. Jovens mascarados entravam em casa e eram recebidos com alegria e servidos de comida que nessa casa existisse, e que se podia prolongar com um baile. Para a autora: "Por vezes, os assaltantes levavam consigo alguns instrumentos musicais, que seriam tocados no caso de não haver discos na casa assaltada, pois o baile precisava de música" (p. 51).
Estava assim reconstituida uma época: 1) escassez de discos em termos de posse individual, fazendo-se o uso mais antigo de tocar música; 2) formação cultural através da rádio (uma espécie de paleo-rádio, para "apanhar" a designação de Umberto Eco relativamente à época da paleo-televisão, onde passavam programas de cultura erudita como a ópera, antes da necessidade de medir audiências como sucesso dos canais comerciais da neo-televisão).
Leitura: Maria Amélia Cutileiro Índias (2004). Évora, ontem e hoje. Reflexões e memórias de uma inconformista. Lisboa: Colibri. 161 páginas, €10. Observação: chamo a atenção para o carinho com que Fernando Mão de Ferro, o editor da Colibri, dedica a este tipo de obras, ao longo dos anos que eu acompanho o seu trabalho. Em mim, a permanente gratidão por ter editado o livro Olhos de boneca, um texto que escrevi sobre telecomunicações e que saíu em 1999.
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