Textos de Rogério Santos, com reflexões e atualidade sobre indústrias culturais (imprensa, rádio, televisão, internet, cinema, videojogos, música, livros, centros comerciais) e criativas (museus, exposições, teatro, espetáculos). Na blogosfera desde 2002.
quarta-feira, 13 de abril de 2005
LEGENDAS ANIMADAS
A legenda do "boneco" de Silva Neto diz: "Em vista de tamanho cuidado com os ruídos, é de supor que estejam na altura daquela cena em que o poeta, agarrado à argola, grita «Há-se sair... Há-de sair...». Se assim é, fazemos votos por que não suceda o mesmo que com o foguete das «Pupilas»".
Descodifiquemos. O primeiro número da revista Espectáculo, semanário de cinema, teatro e actualidades, saía a 13 de Junho de 1936, dirigida por Armando de Miranda, que assinava frequentemente A. de M.
O cartoon desse número inicial, que ocupava a página toda, era uma referência ao filme então em rodagem de Leitão de Barros, Bocage. O regime político solidificava-se, com a guerra civil no país ao lado a chegar ao fim e o fervor nacionalista e patriótico a aumentar pela Europa inteira. O cinema era, ao lado da rádio, uma grande arma de propaganda. Na altura da rodagem de Bocage, António Lopes Ribeiro dirigia A revolução de Maio, uma encomenda do Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro.
Alguns quadros do quadro
A imagem deve decompor-se em vários quadros, como se estivesse em espiral, para uma compreensão mais delicada. O primeiro é o da rodagem propriamente dita. Vê-se o cameraman, o projeccionista, o actor. Mas o homem da câmara quer silêncio - num espaço de grande algazarra. Algumas das cenas do filme decorriam nessa altura em exteriores, caso de Queluz, pelo que li na imprensa.
Ao filme a ser rodado, há um outro "filme", o da vida do dia-a-dia. E o que se vê? A contradição entre o campo e a cidade ou, se olharmos de outro prisma, entre a tradição e a modernidade, representadas respectivamente pela carroça e pelo burro impertigado, por um lado, e pelo automóvel que fazia um atropelamento à vista de toda a gente, por outro lado. Parece que ainda não se circulava pela direita, mas à inglesa.
A autoridade concentra-se no acidente da modernidade, que o burro aos pinotes era coisa do passado. Vêem-se dois agentes, um levando a mão ao cassetete. Mais atrás, a cavalo, um graduado olha quer o acidente quer um par de namorados, em que ele é militar (imagem seguinte). Nesta última, figura ainda o par de músicos com calças cheias de remendos, sendo o acordeonista cego, uma mãe que tem dificuldades em conter o berreiro da criança, um par de crianças que oscila o seu olhar entre os tocadores-cantores e a mãe com a filha.
A história do poeta
Vê-se ainda um carro eléctrico da CCFL - sigla que quer dizer Companhia de Carris de Ferro de Lisboa - a ir para a Estrela. Juntamente com o automóvel em experiência (de atropelamento) e o filme de Leitão de Barros, o eléctrico [bondinho, para os meus leitores brasileiros] é um dos sinais de modernidade da capital do então ainda império.
Entrevistado no número 6 do mesmo semanário Espectáculo, Leitão de Barros diria sobre os púbicos que iriam ver o seu novo filme [já fizera a Severa e As Pupilas do Senhor Reitor]: "Há os que esperam, ingenuamente, um filme onde passam todas as falsas anedotas de Bocage, desde as poesias eróticas às brejeirices de viela, às porcarias de Carnaval, a certos improvisos imundos que correm hipocritamente atribuídos a Bocage. Há outro sector público que gostaria de ver um filme revolucionário e político, irreverente, agressivo e doentio. [O público mais culto] espera ou exige um filme onde se respeite a verdade psicológica, mais que a semelhança física, do grande poeta lírico, do maior poeta nacional depois de Camões, que paira ainda hoje como árvore frondosa e isolada nessa desoladora planície, que é a literatura poética do século XVIII".
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