terça-feira, 19 de abril de 2005

UMBERTO ECO (I)

A recente edição, pela Difel, do romance de Umberto Eco, A misteriosa chama da rainha Loana, faz-me dar relevo a esta obra. Para além da narrativa ficcional, o texto trabalha memórias do cinema, da rádio e da banda desenhada num tempo preciso, o da infância e adolescência de Eco. Um propósito nobre a trazer aqui ao Indústrias Culturais.

Antes, porém, quero fazer um breve excurso sobre outro livro do semiólogo e romancista italiano, no caso o livro O nome da rosa, também editado pela Difel [a imagem da capa é retirada de edição anterior à actual]. Quero ainda aproveitar o ensejo para escrever sobre Giambattista Bodoni, famoso tipógrafo nascido em 1740 e que emprestou o nome ao narrador de A misteriosa chama da rainha Loana.

A teia narrativa

Durante três anos consecutivos, dei uma cadeira de Teoria da Informação a alunos de pós-graduação em Ciências Documentais na Universidade Lusófona. Na primeira aula de um desses anos lectivos, a 6 de Novembro de 2001, falei do livro de Umberto Eco, O nome da rosa. Trata-se de um livro sobre livros - e da biblioteca, elemento fundamental para alunos dessa matéria -, onde ao mesmo tempo se escreve sobre inquisição, intolerância e heresia. Para além da leitura do livro, obriguei-me a ver uma versão cinematográfica feita a partir daquele (confesso que gostei mais do livro que do filme, obrigado a representar a biblioteca - onde quase tudo se passa - como espaço sem o encanto proposto por Eco, com labirintos, passagens secretas e numeração de livros apenas acessíveis a iniciados).

eco1.jpgUm estudioso descobre a tradução francesa de um manuscrito do séc. XIV. O autor é um monge beneditino alemão, Adso de Melk, que relata acontecimentos passados numa abadia italiana, onde se reuniriam teólogos do papa João XXII e do imperador Luís de Baviera (1327). Adso, então noviço ao serviço do franciscano Guilherme de Baskerville, antigo inquisidor e amigo de Guilherme de Occan e Marsílio de Pádua (religiosos intelectuais importantes na época), escreve sobre as mortes ocorridas antes, durante e depois do encontro de teólogos. Guilherme de Baskerville, que iria ser representante do lado dos franciscanos, é encarregado pelo abade (responsável da abadia) de investigar as mortes. Dotado como perscrutador de sinais, descobre o culpado nos labirintos da Biblioteca.

Como disse atrás, o livro é uma história de livros (p. 11). Só o bibliotecário [por tradição, o que se tornará abade, como Eco escreve na p. 413] tem "o direito de se mover no labirinto dos livros. [...] Só o bibliotecário sabe, por colocação do volume, pelo grau da sua inacessibilidade" (p. 41). O bibliotecário é, pois, um guardião; não o que torna aberta a biblioteca, mas o que zela pelos seus segredos. No caso da ficção de Umberto Eco seria um livro perdido de Aristóteles sobre o riso e a comédia, destruído e perdido definitivamente no incêndio que se dá no sétimo dia de investigação de Guilherme. Este, na sua investigação, apreende a organização e o registo dos livros, junto de Malaquias, o bibliotecário (p. 77).

Detecta-se aqui uma oposição: a organização e o registo dos livros significa cosmos e ordem, o incêndio dos livros a destruição e o caos. Dito de outra maneira: "estamos a procurar compreender o que terá contecido entre homens que vivem entre os livros, com os livros, dos livros, e portanto também as suas palavras sobre os livros são importantes" (pp. 110-111), em desabafo após as mortes de Adelmo e Venâncio, os primeiros monges encontrados mortos em circunstâncias estranhas, e após conversa com Severino, o ervanário.

eco2.jpgHá uma constante descrição da biblioteca e do seu labirinto, de uma grande imaginação no livro mas que perde quase todo o relevo no filme, como escrevi acima [imagem de Eco retirada do sítio The Modern Word]. O labirinto desempenha um papel central: "os construtores da biblioteca tinham sido mais hábeis do que julgávamos" (p. 166). Isso depreende-se da entrada de Guilherme e Adso naquele labirinto: "Ao longo das paredes fechadas encostavam-se enormes armários, carregados de livros dispostos com regularidade. Os armários tinham uma etiqueta numerada, assim como cada uma das prateleiras: claramente, os mesmos números que tínhamos visto no catálogo" (p. 165).

A interligação de um livro aos outros livros

A narrativa de Eco elabora uma permanente ligação dos livros entre si, como se nota no diálogo entre Guilherme de Baskerville e Adso de Melk (p. 282): "-... para saber o que diz um livro tendes de ler outros?" "-... Muitas vezes os livros falam de outros livros. Muitas vezes um livro inócuo é como uma semente, que florescerá num livro perigoso, ou inversamente, é o fruto doce de uma raiz amarga." "-... Os livros falam dos livros... é como se falassem entre si. À luz desta reflexão, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era portanto o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminhos e pergaminhos, uma coisa viva, um receptáculo de poderes...".

Ou, apresentado de outro modo, "Diante de um livro não devemos perguntar-nos que coisa diz, mas que coisa quer dizer, ideia que foi muito clara para os velhos comentadores dos livros sagrados" (p. 312). E ainda: "um livro é feito de signos que falam de outros signos, os quais por sua vez falam das coisas" (p. 390). O velho semiólogo aparece na melhor das formas: "...eram puros sinais, como eram sinais da ideia de cavalo as pegadas sobre a neve: e usam-se sinais e sinais de sinais apenas quando nos faltam as coisas" (p. 32). Apenas mais duas citações: "o homem não pode chamar ao cão uma vez cão e outra gato nem pronunciar sons aos quais o consenso de pessoas não tenha atribuido um sentido definido" (p. 49). E: a Jorge de Burgos [mais tarde descoberto como o assassino] "bastava dizer peixe para nomear o peixe, sem lhe ocultar o conceito sob sons mentirosos" (p. 111).

O livro ligado a outro livro, mesmo numa ligação silenciosa pelo facto de estarem juntos numa estante, remete para a ligação entre pessoas, que, mesmo desconhecendo-se entre si, podem cruzar-se e estabelecer laços. Em que a memória dessas pessoas funciona, com frequência, através de leituras e de relatos de outros - um dos temas de A misteriosa chama da rainha Loana.

[continua]

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