ELE HÁ PÁGINAS FELIZES
As páginas do Público de domingo e segunda-feira estavam toldadas de escuro, a propósito do previsível "não" francês à Constituição Europeia. Mas, dentro, havia páginas muito felizes. A 15 de domingo e as 6 e 7 de segunda-feira.
Passo a explicar. No domingo, lia-se o par ideal Mário Mesquita e Ana Sá Lopes (pela ordem de leitura da esquerda para a direita). Aliás, os dois já assinaram juntos, há ainda pouco tempo, um texto - um governo só de mulheres para Portugal. Mesquita, no seu agradável estilo, escreveu agora sobre Ricoeur, de modo lúcido e profundo de quem conhece bem do que fala. Trata-se de um trabalho para guardar. Por seu lado, Sá Lopes, em estilo dominical liberto de pressões do tempo de fecho, desta feita sem a volúvel Vanessa mas com um adepto de futebol, foi à feira do livro. Não conto a história - quem quiser que compre o jornal e a leia.
Na segunda-feira, Eduardo Prado Coelho falava do serviço público de televisão, a propósito do jogo de domingo, género "E você, Jorginho, o que é que pensa [...] fazer aquele que vai ser o seu último jogo pelo Setúbal"? Parecia um respeitável chefe de família a dissecar a realidade banal da televisão do dia-a-dia - e que eu partilho nesse ponto de vista. Ao lado, em tom também sério mas interrogativo, Fernando Ilharco publicava um dos seus melhores textos: "Marcados por uma cultura electrónica de intenso envolvimento sensorial, os mais novos quando iniciam o ensino obrigatório levam para a escola a disponibilidade para se envolverem participativa e totalmente. E, estrutural e fundamentalmente, o que faz a escola? Como tecnologia mais avançada da era do alfabeto fonético, a escola obviamente rejeita aquela disponibilidade". Vislumbro ali decisões a tomar por um jovem pai.
Glosa crua
Mas havia outra pérola, na página 6 do jornal de ontem, numa carta ao director, a de Carlos J. F. Sampaio. O título, possivelmente colocado pelo jornal, é Informação limitada, muita ou demais? Não maço os meus leitores com a carta toda, mas o aperitivo é excelente: "É frequente ouvirmos dizer que vivemos numa sociedade «mediatizada», em que os media têm um enorme poder, que condicionam fortemente a informação que nos chega e, consequentemente, a nossa visão do mundo. Embora, em parte, isso seja verdade, acho que essa perspectiva deve ser um pouco matizada". O texto pode ser lido na totalidade no blogue de Carlos Sampaio, Glosa Crua.
Ora, quem é este Carlos Sampaio, que já nos brindou recentemente com uma carta sobre a linguagem adolescente nos blogues (também editada no Público), e que eu aqui destaquei? Autor do blogue acima indicado, engenheiro electrotécnico oriundo do Grande Porto, tem exercido a sua actividade profissional em Singapura, Argentina, Hong Kong, Índia, Bélgica, Brasil, Magreb e outras partes do mundo. Habituado a ver o país "de fora para dentro e de dentro para fora" (80% do seu trabalho, disse-me, é exterior a Portugal), no seu blogue escreve sobre livros, que "sempre foram uma parte importante da minha vida. A minha vivência de contacto com o exterior e a minha actividade profissional criaram-me a apetência para e a necessidade de acompanhar o que se passa um pouco por todo o lado. Num dia «normal» visito aí uns oito a nove jornais de cinco ou seis países". Há, nele também, uma vontade de intervenção cívica, cuja sequência lógica é o blogue.
O meu obrigado ao jornal Público por ter dado a conhecer, se não um escritor, alguém que reflecte a realidade da comunicação dos dias que correm, sem o aparato académico de muitos de nós, que inibe o diálogo com os outros. Ele há páginas felizes.
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