terça-feira, 14 de junho de 2005

NECROLOGIAS

Concordo quase plenamente com o que ontem editou Paula Cordeiro, no blogue NetFM, a propósito das mortes de Álvaro Cunhal e Eugénio de Andrade. O título da sua mensagem seria Bons momentos de rádio. Escrevendo habitualmente sobre a rádio, a professora universitária anotou que "quer a Antena 1 quer a TSF dedicaram parte da manhã informativa a cada uma das figuras. No geral, as restantes estações limitaram-se a fazer pequenos apontamentos nos noticiários à hora certa". Eu, antes da dez da manhã, ouvia a Antena 1. Curiosamente, tomei conhecimento da morte de Cunhal perto de Santa Comba Dão, terra de Salazar, que eu atravessava de automóvel vindo de mais a norte em direcção a Lisboa.

Da produção de stock às capas de jornais

Mas os bons momentos de rádio tiveram, no caso da estação pública, trabalho editorial prévio, pois foi feita uma emissão especial durante cerca de uma hora sobre o antigo líder comunista, com certeza não executada em cima da hora. Um investigador francês, Patrice Flichy, a propósito da televisão, distingue produção de fluxo (a necessidade de ter notícias hora a hora) e produção de stock (a passar em momentos específicos). Isto significa que os "bons momentos de rádio" também contaram com a percepção de que Cunhal estava a morrer.

Quanto à televisão vi apenas parte do noticiário das 20:00 do canal público. Já havia horas de intervalo entre o conhecimento da morte de Cunhal e o noticiário pelo que foi possível ouvir testemunhos de apoiantes e críticos da linha política da personalidade agora desaparecida. A televisão, como usa o elemento "voz popular" como uma das estratégias de alongamento do noticiário, entrevistou gente anónima que falou sobre Cunhal. E, se a rádio pode distribuir a informação também pelo desaparecimento de Eugénio de Andrade, pressupondo um público mais conhecedor, a televisão deu a primazia ao político, dado o poeta não ter a notoriedade popular daquele. Como observou com pertinência Madalena Oliveira, do blogue Jornalismo e Comunicação: "O mesmo se repete de cada vez que morre um personalidade da vida pública - a morte é uma notícia que se prolonga interminavelmente nos telejornais".

O mais interessante viria do campo da imprensa, como escreveu Manuel Pinto, do mesmo blogue Jornalismo e Comunicação. Com uma mensagem intitulada A primeira página, ele mostra como foi diferente o dispositivo dos editores dos jornais de qualidade (Público, Diário de Notícias), populares de qualidade (Jornal de Notícias) e populares (Correio da Manhã) (remeto para o seu blogue a leitura completa do post). Como resolver o facto de duas figuras públicas morrerem no mesmo dia? Qual o relevo de cada uma?

O resultado do Diário de Notícias foi o mais espectacular em termos de impacto. Ao desenhar a fórmula de duas capas - uma em cada lado do jornal - uma das metades foi dedicada ao político e a outra, impressa ao contrário, ao poeta (no quiosque onde compro os jornais, o lado de cima tinha a capa de Eugénio de Andrade) - o jornal resolveu facilmente essa tarefa (ver texto de Luís António Santos, no blogue Atrium). Isso encontra-se com alguma frequência em livros bilingues, onde tanto se pode começar de um lado como do outro. Mas também em livros de banda desenhada. Confesso que gostei mais da capa do Público, que juntou aos dois desaparecidos um terceiro, o pintor René Bertholo, dando-lhe uma página completa (p. 49).

Páginas de necrologia e gravatas pretas

Pus-me a meditar - na sequência do comentário de Madalena Oliveira acima referido - em como a necrologia toma conta dos media. Dantes, era possível correr as últimas páginas dos jornais, onde se noticiavam as mortes, mas também os nascimentos, os baptizados e os casamentos (menos os divórcios), negócio praticamente deixado aos pequenos jornais locais e regionais. Em jornais de grande tiragem, apenas o Jornal de Notícias tem uma secção de necrologia com peso de publicidade (do mesmo modo ainda é possível ver, nas pequenas cidades, informação colocada nos estabelecimentos comerciais sobre os falecimentos, a fim dos conhecidos saberem para onde vai o funeral). Já os diários de Lisboa quase não têm este espaço: a morte é do domínio privado, não se anuncia mas esconde-se. À excepção das figuras públicas, que merecem lugar na primeira página com indicação do ano de nascimento (e de morte, como nós não soubessemos o ano em curso).

Ainda me lembro do cenário de destruição da ponte de Entre-os-Rios em 2001. Para além da carga emotiva, e da contínua e exagerada presença dos jornalistas em directo, os jornalistas âncora (pivôs) vestiam gravatas pretas. O espaço de rigor e isenção, que se exige dos media, transforma-se nestas ocasiões. Noutras, no caso do futebol, levam-se cachecóis e bandeiras, publicitando gostos e tendências pessoais. Os media, em especial a televisão, procuram ser nossos íntimos, entrar amigavelmente dentro das nossas casas; daí, todo esse à-vontade.

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