O HOMEM SEM PIANO
Nuno Pacheco dedica o editorial do Público de hoje à história da semana, a descoberta da identidade do homem do piano, que encantou a comunicação social há uns meses atrás e, por via disso, os leitores e os telespectadores. Afinal, o homem não tinha nada de secreto, como se viu após ele quebrar o seu prolongado silêncio. Fico-me pelo começo da peça de Pacheco (belamente intitulada "Drama, plano e fuga", num apelo à cultura da música clássica), pois não tenho permissão de a copiar da internet, e passar todo o texto à mão para o computador custa tempo e esforço: "Foi um idílio breve mas intenso. Durante quatro meses, o mundo (ou a parte dele que com tais coisas se importa) seguiu com um misto de avidez e deslumbramento o caso do chamado Homem do Piano, um jovem desconhecido que apareceu numa praia britânica, com as roupas encharcadas e sem pronunciar uma só palavra. Quando lhe estenderam um papel, desenhou um enorme piano".
O resto já se sabe: o homem seria virtuoso, tocando Bach, Lizst e Chopin - sigo a lista do editorialista, que escreve com uma prodigiosa e invejável memória cinematográfica, à procura de encaixar a história do homem do piano em próximo êxito do cinema. Porém, agora, desfeita a ilusão, o homem só martelaria uma tecla. Clamam "fraude". Incrível: parece um juízo sobre um treinador de futebol: hoje é bestial se ganha, amanhã é besta se perde!
Nuno Pacheco esqueceu-se de um pormenor: não definiu o papel dos jornalistas na história. E parece-me que eles têm um papel, pois aceitaram a definição dada pela fonte do hospital psiquiátrico inglês onde Adreas Grassl, o jovem de 20 anos alemão, permaneceu durante estes meses. Na quarta-feira passada, Filipe Morais, do Diário de Notícias, fora mais cauteloso que Nuno Pacheco (é certo que um escreveu um editorial e outro uma reportagem). Morais contaria, entre outros, com o comentário de Manuel Pinto (Un. Minho), que respondeu ser estranho que os media alemães não tenham descoberto o caso, mas "à partida, não parece um caso paradigmático de incompetência da imprensa e os jornalistas têm de confiar nos especialistas".
Para mim, a história é deliciosa, merece tornar-se argumento de cinema, pois a efabulação toda criada em torno dele é uma boa narrativa. Repare-se que Andreas apenas se mostrou em silêncio, desenhou um piano e tocou. É, afinal, a história de Lincoln Seis Eco (interpretado por Ewan McGregor) no filme A ilha (2005, realizado por Michael Bay), que desenha um barco e, a partir daí, se desenrola a trama da "ilha", onde todos ambicionam chegar para iludir a realidade mecânica e desumana em que viviam. No caso da história do agora identificado alemão, o que surpreende é a doçura e entusiasmo com que os media a receberam, de uma ingenuidade tamanha. Prova que os jornalistas são conduzidos frequentemente pelas fontes, com estas a definirem territórios de comunicação para aqueles [espero recuperar da memória um pequeno texto que escrevi há algum tempo sobre a relação entre fontes e jornalistas]. Resta a ideia de que Andreas era, no fim de contas, um homem sem piano.
1 comentário:
concordo plenamente consigo, Professor. Eis um caso (mais um...) que demonstra como - por vezes - é muito fácil manipular os jornalistas (mentir-lhes e levá-los para determinados caminhos). Neste até parece que os jornalistas quiseram (gostaram?) de ser manipulados...
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