sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

LISBOETAS NO SÉCULO XX

O registo de José-Augusto França é muito diferente do produzido por Beatriz Pacheco Pereira, no livro que destaquei no passado dia 27, O Porto e as suas mulheres. Em Lisboetas no século XX. Anos 20, 40 e 60, o autor apresenta a obra como "um divertimento de historiador" (p. 7).

França serve-se do romance de Armando Ferreira, Os Barbosas, como uma espécie de rasto literário para apreciação da época. Com os Barbosas, está-se apto a "situá-los nas suas práticas citadinas, e vermos o que faziam ou podiam fazer, em anos de aclimatização (e por isso particularmente significativos) da população, muito dela nova, de Lisboa-1920, na sua demanda de sentido, social e urbano. E melhor será isso, com certeza, do que figurarmos anonimamente tais práticas quantificadas, em abstracto. Quem ia ao trabalho era o Barbosa, às compras a D. Quitéria Barbosa, à escola oficial da instrução primária e bastante, da Rua da Madalena, o mais pequeno dos cinco filhos Barbosa, ao cinema e ao teatro todos eles, quando iam" (p. 13).

O testemunho de classe dado pelos Barbosa aplicar-se-ia aos anos de 1920: recém-chegados a Lisboa, o enredo do romance leva os Barbosas a habitar em zonas distintas da cidade, umas mais antigas que outras. José-Augusto França mostra-nos a evolução da cidade (o seu crescimento, os seus agentes sociais, a política, a cultura). Duas décadas depois, para um semelhante enquadramento, ele apoiar-se-á na peça de Luís Francisco Rebelo, Anos quarenta. Aqui segue o percurso dos Meneses, sendo o chefe de família um funcionário público.

Mas José-Augusto França também obtém auxílio em André Brun e Repórter X, em Urbano Tavares Rodrigues e Artur Portela, em José Cardoso Pires e Luís Sttau Monteiro. E, em especial, nos ilustradores da época, como Bernardo Marques, Almada Negreiros, Carlos Botelho, Francisco Valença e João Abel Manta, que tornam esta obra de 106 páginas um livro-álbum delicioso para oferta (pessoal ou a um amigo ou familiar) [e que eu, por direitos de autor e da editora Livros Horizonte, não tenho permissão de copiar].

Como olha ele as indústrias culturais? Pela leitura, vê-se que França privilegiou o cinema (ver páginas 65, 69, 77). As rádios privadas e o filme A menina da rádio afloram na p. 45. Parece-me que ele faz mais alusões ao telefone que à rádio. Depois, apresenta a televisão (na p. 75, associando o seu surgimento em igual período ao do metro e ao da ponte 25 de Abril, então designada de Salazar). E refere, com pena, o desaparecimento do jornal Sempre Fixe, em 1959 (p. 83), publicação onde a sátira se faz acompanhar de desenhos e caricaturas que o autor aproveita. Mas também a entrada em cena do segundo canal da RTP, no Natal de 1969 (p. 99). Sem esquecer o "seu" surrealismo (p. 71).

Como José-Augusto França conclui: "O lisboeta burguês e mediano que imaginámos, tirando traços de uma ou outra personagem que a literatura de observação nos deu, ao mesmo nível de classe, em seus avatares e sucessões, entrou pelos anos 20 dentro de bigodes, polainas e bengala, pelos anos 40 já sem pêlos na cara mas de chapéu na cabeça - para sair da cena em 1970, com nova barba, mas sem chapéu e sem gravata já. Ou, no feminino, vestindo camisa em 1920, inaugurando «soutien gorge» a meio da década, em «boutique» de «prêt-a-porter», e começando a usar calças na rua... E para um sexo e outro houve, sucessivamente, anos de carro eléctrico, anos de autocarro e anos de metro - em penas quotidianas modificadas" (p. 105).

Leitura: José-Augusto França (2005). Lisboetas no século XX. Anos 20, 40 e 60. Lisboa: Livros Horizonte, 106 páginas, preço de € 18 (na livraria Leitura, no Porto, fizeram-me um desconto de 10%, quiçá lembrando-se do tempo em que abundantemente lá me abastecia, até com conta a crédito).

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